Américo Aguiar sobre memorial a vítimas de abusos: “Nunca me fez clique”

Bispo Américo Aguiar, responsável pela Jornada Mundial da Juventude, diz que memorial às vítimas de abusos sexuais no Parque Tejo “não é a forma mais feliz”.

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Bispo Américo Aguiar é também presidente da Fundação Jornada Mundial da Juventude Rui Gaudêncio

Bispo Américo Aguiar é também o responsável pela Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que vai trazer a Lisboa em Agosto o Papa Francisco e mais de um milhão de jovens. Entrevista ao programa Hora da Verdade do PÚBLICO/Renascença é emitida esta quarta-feira na íntegra às 23 horas, na Renascença.

Vamos à Jornada Mundial da Juventude. Acha mesmo necessário um memorial às vítimas? Não será uma hipocrisia, depois da polémica sobre os custos, falar-se agora de mais uma obra?
Eu tenho uma leitura muito pessoal daquilo que é a questão do memorial, que nasceu de uma recomendação, já há algum tempo, da comissão independente. As pessoas que fizeram testemunhos manifestaram que devia existir qualquer coisa visível, material, que pudesse ter algum significado. A mim, confesso que...

... acha que é uma hipocrisia?
Não sei se hipocrisia é a palavra certa, mas, desde o início, [a proposta de memorial] não me fez “clique”.

A ideia causa-lhe algum desconforto?
Sim, sim. Principalmente para as vítimas. Não sei se é a forma mais feliz de materializar o respeito, o mea culpa e a “tolerância zero”. Não sei se é a forma mais feliz de o fazer, principalmente quando, nestas coisas, passa o dia, passa a romaria e passado algum tempo alguém já não sabe o que é aquilo. Não sei se é a expressão mais positiva daquilo que possamos e devemos fazer. Peço desculpa, mas eu tenho um fraquinho pela APAV e tenho um fraquinho pelo programa Care. Preferia que a Igreja financiasse permanentemente coisas destas.

O memorial vai em frente de qualquer forma ou não?
Isso foi uma recomendação do dia 3 de Março, do encontro plenário da CEP onde eu não estive. Pelo que entendi, a inauguração seria no contexto da Jornada Mundial da Juventude e depois a peça iria para outro local, onde ficaria. Não sei. Vamos ver como é que vai evoluir, como é que se vai concretizar. Mas, colocando-me no papel das vítimas, mais monumento, menos monumento, não é qualquer coisa que me respeite. Ou, pelo contrário, até pode ser qualquer coisa que me cause algum desrespeito e eu preferiria qualquer coisa mais mensurável, qualquer coisa mais positiva, mais prática naquilo que seja uma luta total para que a “tolerância zero” aconteça.

Nesta altura, já não se devia conhecer o Plano de Mobilidade da JMJ? O Governo prometeu apresentar esse plano até ao final de Março...
Todas estas áreas estão a ser trabalhadas com muito cuidado, com muita dedicação, com muita entrega da parte de todos. Da parte do Governo, as coisas estão a ser feitas. Acredito que quem está do lado de fora e não tem informação tenha uma percepção de atraso e de pressão. Mas as coisas estão a ser feitas nos seus timings.

Aqui há umas semanas, dizia que o orçamento da Igreja era de 80 milhões. Esse número mantém-se?
Estamos a fechar o orçamento e pedimos ajuda a quem sabe “economês” e comunicação para nos ajudar a apresentar o orçamento de uma maneira entendível por todos, naquilo que é gasto, naquilo que é investimento, naquilo que é retorno, naquilo que é injecção na economia.

Mas a minha dúvida é: onde é que a Igreja vai buscar este dinheiro? Tem de fazer empréstimos? Ou tem o dinheiro num cofre?
Se tivéssemos esse dinheiro no cofre, era mau, significava que andávamos a amealhar e não a gastar no que devíamos. A Igreja não deve desviar um cêntimo do apoio aos pobres e ao apoio sociocaritativo para a JMJ. Uma coisa são os pobres e as pessoas que precisam de ajuda e esse dinheiro é sagrado, não deve ser desviado seja lá para o que for.

Será necessário então recorrer à banca?
Estamos a trabalhar com duas fontes de receita. Umas são aquilo que os jovens confiam à organização, porque assim a alimentação é paga pelos jovens e, portanto, apenas entregam à organização o valor necessário para a alimentação e, portanto, os 30 milhões de euros que nós falamos vêm dos jovens. Quem diz a alimentação, diz o seguro e o transporte. Há outra fonte de receita que é o apoio dos benfeitores e dos doadores. Até à data, ultrapassámos os cinco milhões de euros.

Não é pouco?
Sou a cara de quem anda a pedir e tenho levado muitas “negas”, de grandes empresas, de grandes grupos.

Os casos dos abusos sexuais têm dificultado essa angariação?
Acredito que possa fragilizar uma ou outra, mas muitos desses contactos até são anteriores à situação e, portanto, acredito que não.

Se for preciso, em vez de pedir dinheiro à banca, pode pedir ao Estado mais algum dinheiro?
Absolutamente, não.

Conta que o Papa Francisco fale com as vítimas de abusos quando vier para a JMJ?
Não tenho dúvida absolutamente nenhuma de que um dos itens da sua agenda privada contará com essa prioridade. Como é que se vai concretizar isso? Não sei. Não tenho dúvida nenhuma de que nas prioridades da agenda que o Papa vai ter durante a sua presença em Lisboa, uma delas, se não for a primeira, será essa [a questão dos abusos sexuais contra menores].

A questão dos abusos vem atingindo o cardeal patriarca de Lisboa. Houve notícias, em 2022, de que terá ocultado uma denúncia. D. Manuel Clemente foi ao Vaticano, consta que terá pedido a resignação antes mesmo de atingir a idade. Tem visto vontade no cardeal patriarca em resignar ainda antes do Verão?
O que eu tenho testemunhado diariamente junto do cardeal patriarca é toda a disponibilidade, empenho e entrega na “tolerância zero” e na transparência total. Nesse Verão de 2022, o cardeal patriarca sofreu muitíssimo com a leitura, que é errada, de um contexto que não corresponde à verdade. Se me dissessem que eu encobri, que eu facilitei, que eu conscientemente fui parte de um crime horrível como este, é óbvio que eu me desmanchava todo.

E confirma-se que terá pedido a resignação ao Papa?
Numa conversa entre os dois, só eles é que sabem.

Acha que o D. Manuel Clemente tem condições anímicas para representar a diocese na JMJ?
Todo o trabalho que é feito de preparação e de vivência da Jornada Mundial Juventude está nos ombros de, actualmente, mais de 600 jovens. Temos 527.000 que já manifestaram desejos de inscrição na primeira fase. Temos 188 países já representados. A questão do bispo de Lisboa não digo que não aquece nem arrefece, mas o senhor patriarca até sexta-feira passada correspondia a tudo aquilo que era necessário fazer.

A corrida à sucessão do D. Manuel já começou? Vê movimentações na Igreja? Qual é o perfil para assumir este lugar que muitas vezes é confundido com o de chefe da Igreja Católica em Portugal?
Exactamente. São 21 dioceses, cada uma é autónoma. São heranças de um tempo passado em que alguns cardeais eram mais veementemente chefes, chefes da causa. Compreendo a vossa curiosidade e essa linguagem desportiva/política-partidária da corrida, das primárias. As coisas não são assim, não são assim...

Não há política dentro da Igreja?
Política há, partidária é que não. A polis está presente em tudo. Ninguém é não-político. O que sei é que, quando um bispo faz 75 anos, faz a cartinha e espera que o Santo Padre o substitua. O Santo Padre dá instruções ao núncio apostólico para sondar, para perguntar, para fazer uma leitura daquilo que é a realidade da diocese e vai fazendo sondagens e vai fazendo auscultações e, a certa altura, manda para Roma a famosa “terna”, uma lista com três nomes.

A “terna” já está feita para Lisboa?
A única pessoa que sabe disso chama-se núncio apostólico.

E o bispo auxiliar de Lisboa pode fazer parte dessa “terna”?
Pode fazer parte dessa, pode fazer parte de muitas, como pode fazer parte de nenhuma.

Se for chamado, também não recusará?
Em qualquer circunstância, devo ouvir o que me está a ser dito, e agir em conformidade.

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