Primeiro eu! Primeiro eu?
O problema começa quando os “eus” se encontram no espaço de socialização da escola ou da vida e percebem que não podem ser todos “primeiro eu”.
Enquanto conduzia, ouvi alguém na rádio dizer que devia muito à máxima que o seu pai lhe tinha legado, pela qual tem norteado a sua vida, de modo a torná-la uma vida bem-sucedida. E essa máxima era nada mais, nada menos do que “Primeiro eu, depois eu e, por fim, eu”. Credo, pensei para com os meus botões, recordando o filme do Woody Allen em que lhe perguntaram qual era a sua religião, ao que ele respondeu sem hesitação: “Converti-me ao narcisismo.”
O problema é que não foi só o pai da radialista que lhe transmitiu esses princípios. Pelo que me é dado observar, depois de mais de 30 anos de ensino e na minha vida quotidiana, parecem ser muitas as crianças que cresceram com a máxima do “Primeiro eu” e que fazem por aplicá-la no seu dia-a-dia.
O problema começa quando os “eus” se encontram no espaço de socialização da escola ou da vida e percebem que não podem ser todos “primeiro eu”, nomeadamente porque existem outros “eus” que também querem ser os primeiros. É matematicamente impossível que todos sejam os primeiros a chegar a um lugar ou a realizar alguma tarefa. Alguns têm de chegar ou fazer primeiro e outros depois. E, da vez seguinte, pode ser precisamente ao contrário: os que foram os últimos podem ser os primeiros e vice-versa.
Nas visitas de estudo, a formação das habituais filas que organizam as saídas da escola são um momento por excelência em que os meninos “primeiro eu” se apercebem — embora nem sempre aceitem — que quando existem outros “eus” nos encontramos diante da impossibilidade de sermos todos “primeiro eu”.
Na escola pública, com o meu último grupo de alunos do 1.º ano, a gestão das saídas da escola era um momento de conflito entre as crianças, porque todas ou quase todas queriam ser “primeiro eu” e passavam o percurso a tentarem ultrapassar os colegas que caminhavam à sua frente para que, quando chegássemos ao destino, fossem elas as primeiras a entrar.
De todas as vezes, falava calmamente com os alunos para que percebessem que não interessava o lugar em que iam na fila. Argumentava que numa fila alguém tem de ser o segundo, o terceiro e por aí fora, até chegar ao último. E que quem é último num dia pode ser o primeiro no dia seguinte. Mais: qual é o problema? Como costumava dizer-lhes, chegamos sempre todos ao mesmo lugar.
Mas um dia o conflito ultrapassou os limites e, quando estávamos quase a chegar ao destino, um menino empurrou todos os que estavam à sua frente para atingir o seu objetivo: ser o primeiro a entrar. Por mais que lhe dissesse para não o fazer, não me dava ouvidos, movido pela sua vontade.
Nesse dia e em muitos outros, falámos sobre o eu, sobre os outros, sobre a inevitabilidade de um dia poderem ser uns os primeiros e da vez seguinte os outros, e até constatámos que os primeiros a entrar na carrinha escolar eram os últimos a sair.
Com o passar do tempo e muitas conversas depois, as crianças foram entendendo que havia dias em que eram “primeiro eu” e outros em que eram “primeiro os outros”.
Gradualmente, foram ensaiando as regras de cortesia do “obrigado/a”, “se faz favor” e “com licença” e foram compreendendo que a simpatia e a generosidade compensam. Dizer “primeiro tu” num dia, para que, na vez seguinte, o outro retribua pode ser compensador e tornar bem mais gratificante a vida em grupo. E não por imposição do adulto, mas sim porque estavam a interiorizar novas formas de conduta em sociedade que tornavam mais agradável o quotidiano de todos.
Atenta ao sinal verde que abria, pensei que a máxima que o meu pai me legou é bem distinta daquela que tinha acabado de ouvir na rádio. O meu pai sempre me transmitiu que a minha individualidade e objetivos pessoais eram importantes — e muito —, mas também me sensibilizou para a importância do outro e da responsabilidade social.
No momento em que estacionava o carro, valorizei os valores que o meu pai me transmitiu e que procuro legar às crianças que me têm passado pelas mãos, com a noção de responsabilidade social com a qual fui educada. Espero, sinceramente, ter conseguido contribuir para equilibrar os “primeiro eu” com os “primeiro tu”, pois só assim poderemos chegar ao “primeiro nós”. E devo-o, em primeiro lugar, ao meu pai.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990