“My journey started on a boat...” a frase mais bonita do ano

Os refugiados não são a “doença”; são o “sintoma da doença” que é a guerra. Devemos concentrar a nossa maior energia na compreensão e no tratamento da “doença”.

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Ke Huy Quan conquistou o Óscar de melhor actor secundário Reuters/MARIO ANZUONI

Quando fui apresentar o meu livro das missões a Lisboa, tive dos momentos mais emocionantes da minha vida. Na Faculdade de Medicina da Nova, tive o privilégio de ser brindado com um auditório cheio a abarrotar, e, talvez por não ter a minha mãe na audiência, comecei por relembrar a minha partida para a minha primeira missão, em que iria para a República Democrática do Congo, sem fazer ideia do que me esperava.

Foi no casamento de um dos meus melhores amigos, na véspera da minha partida, em que, a certa altura da festa grossa, agarrei na minha mãe para dançar. Felizes, alegres e contentes, comigo a gravar nas minhas memórias o sorriso da minha mãe. Quando fiz pausa na dança, saí da tenda para ir lá fora arejar as emoções, acompanhado de um amigo. Sem dar por ela, comecei a chorar agarrado a ele como uma Madalena arrependida. Dominado pelo medo de não voltar a ver a minha mãe, os meus amigos, e já sufocado pelas saudades antecipadas na véspera da missão para os confins de África no meio de uma guerra civil tenebrosa.

Contei esta história, sem conseguir evitar emocionar-me imensamente por reviver esse momento em voz alta. Contei muitas outras histórias sobre pessoas, sobre países. Sobre a beleza de pontos do planeta que sofrem o inimaginável, e que nós teimamos em desprezar por completo, apenas porque nos é mais confortável não olhar, não sentir. Mas o que mais me marcou nesse evento foi o final.

Na fase em que passo a palavra ao público para perguntas ou comentários, levanta-se uma rapariga e diz algo como: “Eu não conhecia o Dr. Gustavo, mas vi no Instagram da Catarina Furtado que vinha fazer esta apresentação e resolvi aparecer (obrigado, Catarina, por isto e por tanto mais; às vezes, uma partilha muda a vida de muitas pessoas, e esta mudou a minha). Regressei há dias duma missão num campo de refugiados em Lesbos, na Grécia, e percebi agora que lhe tenho que entregar dois abraços. Ouvi falar mais do que uma vez dum médico português que agora percebi quem é. O primeiro abraço, que me pediram para entregar quando souberam que eu era portuguesa, é de um senhor da Síria, que disse que o Dr. Gustavo salvou a vida à sua mulher numa urgência obstétrica complicada (eu comecei a tremer de emoção; estive na Síria em 2013, na região agora devastada pelo terramoto e ainda a contas com a pior guerra dos nossos tempos).”

“E o segundo abraço, que me pediram para entregar, é de um rapazinho do Iraque, de Mossul, que diz que o Dr. Gustavo salvou a vida do seu irmão, vítima de um bombardeamento. E que diz que adora futebol, e que, ao contrário dos seus amigos que são adeptos do Real Madrid, do Barcelona ou Manchester, ele ficou adepto do Futebol Clube do Porto!”

Mais uma vez não consegui segurar as lágrimas. Anos depois da Síria e do Iraque, passando por Lesbos, chegou a mim em Lisboa, directo como uma lança ao meu coração, o melhor presente que me podiam oferecer. É curioso que não me lembro de nenhuma das histórias, mas parece que as coisas bonitas que fazemos ficam tatuadas no coração da humanidade para sempre.

Nesta semana ouvimos o que para mim é a frase mais bonita do ano: “My journey started on a boat… and then in a refugee camp”, do vencedor do Óscar de melhor actor secundário, Ke Huy Quan, que já nos tinha deliciado com a sua actuação como o “miúdo asiático do Indiana Jones”.

Os refugiados não são a “doença”; são o “sintoma da doença” que é a guerra. Devemos concentrar a nossa maior energia na compreensão e no tratamento da “doença”, o que nos parece por vezes impossível, mas não é. No entretanto, podemos fazer muito mais para aliviar os “sintomas” desta “doença” e receber melhor e tratar como seres humanos, os refugiados.

Há histórias incríveis de sucesso como a de Ke Huy Quan, do Vietname, ou das irmãs nadadores Mardini, da Síria (As Nadadoras, filme lindo da Netflix) ou do jogador de futebol do Real Madrid Eduardo Camavinga​, refugiado do Congo, que não só joga num dos melhores clubes do mundo, como representa a Selecção de França, país onde cresceu e viveu.

O mundo é tão mais bonito, quanto nós queremos que ele seja, e está ao alcance de todos nós tocar numa vida humana que nasceu no lado das “doenças” do planeta.

E o bem que fazemos fica guardado no coração da humanidade até ao infinito.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteira

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