Saúde, o “mistério” de Lisboa e Vale do Tejo e outros mistérios

A última coisa de que precisamos é de comparações e concorrências regionais no SNS.

Na situação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) em que estamos, a última coisa de que precisamos é de comparações e concorrências regionais. Mas é o que tem acontecido, umas vezes subtilmente, outras mais claramente, nas comparações entre a boa gestão da Região Norte e a má gestão da Região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT). Junta-se a isso o facto de a realidade não caber num espartilho empresarial. Como sempre, a explicação é encontrada na palavra “gestão”, estando implícita a cultura de empresa, a que aliás se liga a designação de CEO à personalidade que está a dirigir, de forma muito centralizada, a estrutura do SNS.

Esta é uma ideologia. Os da minha geração, médicos no Hospital de Santa Maria no período intercalar do Governo Santana Lopes, lembrar-se-ão das sessões pedagógicas que a gestão do hospital impunha aos directores de serviço, em que mostrava acetatos com desenhos de fábricas a deitar fumo, ou evocando o funcionamento dos bancos, para explicar que o hospital tinha que funcionar assim. A verdade é que, vinte anos depois, isto repete-se, de forma mais sofisticada. É também a ideologia de comentadores bem instalados, sendo mesmo a cassette de alguns pivots de debates na televisão pública e privada.

A minha ideologia, e felizmente que a tenho, baseia-se antes de tudo na observação da realidade concreta, para além das razões da história e da sua dinâmica. Não considero que o SNS seja uma empresa, não se destina a ter lucros. O lucro é fornecer bons serviços à população, a qual contribui para o orçamento através de impostos directos ou indirectos. O orçamento é um investimento, que, aliás, em parte fica todos os anos por realizar.

Ora o que se passa na Saúde na Região de Lisboa e Vale do Tejo não é nenhum mistério. Relativamente a médicos com menos de 31 anos (já especialistas ou especialistas em formação), LVT começou em 1996 a perder clínicos em termos relativos, por 100 mil habitantes, e em 2018 esse rácio já era cerca de metade do registado no Centro Litoral e no Norte Litoral.

Em Lisboa e Vale do Tejo decrescera 25%, em nome da descentralização, de forma cega. Para além desta desigualdade, o número de médicos mais jovens foi decrescendo fora e dentro do SNS em todo o país. Do SNS em 2019 já tinham saído 13.000 médicos com menos de 65 anos. Com o envelhecimento do efectivo, em 2020 havia no país 6000 médicos entre os 55 e os 65 anos, ou seja em idade de já poderem recusar fazer urgências.

Em Novembro de 2022, o país tinha 1.422.103 utentes inscritos sem médicos de família. Mas a realidade geográfica era desigual. Mais uma vez Lisboa e Vale do Tejo surgiam à cabeça em termos de falta de médicos, sendo os agrupamentos mais carentes de todo o país os de Sintra, Loures e de Lisboa cidade. E admiram-se dos protestos de Loures? É um país real e desigual: por exemplo, na Amadora, há 29.669 utentes sem médico de família; e no Centro de Saúde Porto Ocidental só há 1947 inscritos sem médico, número idêntico ao do resto da cidade Isto não acontece por magia. Houve responsáveis e continua a haver. Quanto à tão falada especialidade de obstetrícia, podíamos fazer o mesmo exercício de contagem.

Na área de Medicina Interna, que é a que está, sobretudo, presente nas urgências, o grupo etário dos 51 aos 55 anos atingiu os seus mínimos em 2018. No entanto, na Área Metropolitana de Lisboa internavam-se em 2018 tantos doentes como em 1999. Não havia e não há camas para os deitar. Entre 2020 e 2001 perderam-se 3350 camas - uma das taxas mais baixas da Europa (Pordata e Eurostat, UE).

Só um apontamento de uma observação fundamental. Olhe-se para o preço do arrendamento de uma casa em Lisboa. Com grande sorte, talvez se arranje um T0 ou um T1 com renda idêntica ao vencimento líquido de um especialista médico. Ou se estruturam rapidamente as carreiras e revêem o tipo de contratos e sobretudo os vencimentos, ou assistimos à derrocada do SNS. E será sempre por causa da “má gestão…”

Essa é a única forma de reter médicos no SNS: reestabelecer carreiras médicas e uma grelha de remunerações decentes. O conhecimento, o prestígio e o orgulho virão por arrasto. Esta não é uma posição sindical, é a defesa do SNS.

A outra forma de gestão que está a ser usada é fechar serviços. Nesses não haverá falta de médicos… Quando o último obstetra ou o último pediatra do SNS fechar o último serviço do Serviço Nacional de Saúde, o problema fica definitivamente resolvido. Fecha-se o SNS e com o orçamento da Saúde alugar-se-ão serviços nos privados. As puérperas farão aí cesarianas em proporção de 60% e ficarão inteirinhas, sem necessidade de fazer no períneo “o ponto do marido”. E o SNS será uma placa giratória, sem necessidade de costuras. E, sem se dar por isso, sem brilho e sem custos, venceram os partidos de direita, minoritários no Parlamento.

Agradeço a colaboração de João Rodrigues, especialista MGF, zona Centro

Sugerir correcção
Ler 5 comentários