Tudo em todo o lado ao mesmo tempo. Eu não vi esse filme

Eu estou exausta. Eu estou feliz. Eu choro. Eu rio. Eu não estou a gostar desta crónica que estou a escrever. Está a saber-me bem escrever isto.

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"Eu sou básica. Eu sou complexa. Eu sou revoltada. Eu sou conformada" Peter Olexa/Pexels

Eu sou mãe. Eu sou filha. Eu sou simpática. Eu sou estranha. Eu encontro pessoas e nunca sei o que dizer. Eu já tenho rugas. Eu ainda tenho acne. Eu tenho medo. Eu tenho sonhos. Eu quero o mundo. Eu quero um quarto. Eu sou adulta. Eu sou criança. Eu peço salada. Eu como o fim do Cornetto das minhas filhas. Eu leio Balzac. Eu ouço Beyoncé.

Eu estou exausta. Eu estou feliz. Eu choro. Eu rio. Eu não estou a gostar desta crónica que estou a escrever. Está a saber-me bem escrever isto. Eu sou relaxada. Eu sou stressada. Eu sou tudo em todo o lado ao mesmo tempo. Eu não vi esse filme. Eu ouvi dizer bem. Eu ouvi dizer que é um sintoma da decadência da indústria cinematográfica. Eu ouvi dizer que é genial. Eu ouvi dizer que é infantil.

Eu estou farta das redes sociais. Eu fico irritada quando o algoritmo me esconde. Eu quero ser escritora. Eu quero estar deitada. Eu quero que gostem de mim. Eu não quero saber se gostam de mim ou não. Eu quero correr na passadeira. Eu tenho dores no joelho. Eu estou a escrever a carregar com força nas teclas, como se esse gesto tornasse o que escrevo mais relevante. Eu odeio tentar ser relevante. Eu já gosto dos queijos brancos. Eu ainda adoro o queijo queimado que sai por fora da tosta mista.

Eu sou básica. Eu sou complexa. Eu sou revoltada. Eu sou conformada. Eu esqueço-me de pôr rímel. Quando ponho rímel, esqueço-me de tirar. Eu tenho alergia ao marisco. Eu como amêijoas.

Eu ainda não encontrei o equilíbrio entre citar demais e ser pedante ou perder a oportunidade de citar e arrepender-me disso. Eu gosto de ir ao cinema. Eu gosto de ver filmes no computador em cima de uma almofada. Eu não tenho vícios. Eu não vivo sem açúcar, café e paracetamol. Eu chego a horas. Eu engano-me no caminho.

Eu adorei o Segredo dos Seus Olhos. Eu odiei o Cisne Negro. Eu sou emancipada. Eu sou dependente. Eu gosto de peixe no forno. Eu estou a comer menos carne. Eu ainda não acho que peixe seja tão bom quanto carne. Eu sou destemida. Eu encolho-me a tirar sangue.

Eu anotei palavras difíceis para um dia usar numa crónica. Beligerante. Pudicícia. Despicienda. Cômputo. Adrede. Entelequia. Heurístico. Espasmódico. Eu nunca vou ter oportunidade de usar palavras difíceis de forma natural se continuar a escrever sobre banalidades.

Eu faço gelinho. Eu tenho as unhas fracas. Eu às vezes medito. Eu às vezes pontapeio o sofá. Eu sou feminista. Eu gosto de Sex and the City. Eu sou céptica. Eu sou sagitário. Eu sou repetitiva. Eu sou original. Eu partilho as batatas fritas com as minhas filhas. Eu escondo os Milka.

Eu adoro o Louis C.K. e o Woody Allen. Eu odeio adorar o Louis C.K. e o Woody Allen. Eu gosto de viajar. Eu gosto de ficar em casa. Eu sou optimista. Eu penso no apocalipse antes de dormir. Eu sou germofóbica. Eu divido pipocas. Eu vou a alfarrabistas. Eu sou alérgica aos ácaros. Eu guio bem. Eu sou péssima condutora. Eu não sou egocêntrica. Eu escrevo dezenas de frases começadas por “eu”.

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