Um quarto só meu

A escrita e o activismo de Virginia Woolf continuam a inspirar até hoje. A independência e a estabilidade financeira são essenciais para a expansão do lado criativo das mulheres.

Foto
"A bandeira da igualdade de género na literatura e na sociedade em geral precisa de continuar hasteada" Unsplash

Quando, em 1929, Virginia Woolf escreveu Um Quarto Só Seu estaria longe de imaginar que, passado quase um século, a sua reflexão sobre as desigualdades de género continuaria tão actual.

Um Quarto Só Seu é um apelo à acção para que as mulheres lutem pelos seus direitos e se capacitem na criação artística e intelectual. Com a sua escrita perspicaz e sensível, Woolf continua a ser uma referência para todas as que buscam ampliar a sua voz e o seu lugar na literatura e noutras esferas da sociedade.

Conheci este livro pelas mãos da tradutora literária, Isabel Castro Silva, na edição de 2022 do Fólio, numa masterclass promovida pela Penguin Random House. Uma plateia repleta de mulheres que se comoveu com uma triste consciência: o que aconteceu no passado repete-se ainda na actualidade, mesmo que com outras nuances.

No seu livro, Virginia Woolf argumenta que as mulheres precisam de alcançar a independência financeira e um espaço próprio para poderem dedicar-se à criação artística. Apresenta uma análise da história da literatura, mostrando como as mulheres foram marginalizadas e excluídas do mundo da escrita, tanto por preconceitos de género quanto por limitações impostas pela falta de recursos e de oportunidades.

A parte do livro que mais me fez reflectir? Quando a escritora apresenta uma narrativa imaginária em que explora a condição das mulheres na sociedade inglesa do século XVI, utilizando como exemplo a história de uma irmã fictícia de William Shakespeare.

Woolf cria uma personagem imaginária, Judith Shakespeare, com o mesmo talento para a escrita que o seu irmão, mas que, por ser mulher, não tem as mesmas oportunidades para desenvolver a sua carreira literária. A autora explora a ideia de que, se a irmã de Shakespeare tivesse seguido os mesmos passos que o seu irmão, teria encontrado muitos obstáculos, tanto sociais como culturais.

Virginia Woolf descreve como Judith teria sido rejeitada pela sociedade da época, que considerava indecente uma mulher dedicar-se à escrita e à cultura. Seria impedida de frequentar escolas ou universidades e obrigada a casar cedo, sem ter a possibilidade de desenvolver as suas habilidades literárias. Woolf destaca ainda como a falta de um espaço próprio e de independência financeira teria sido um obstáculo para a carreira literária de Judith. A história de Judith Shakespeare é um exemplo de como a falta de oportunidades e de liberdade podem levar à perda de talentos e de contribuições importantes para a cultura e a literatura no feminino. No passado e no presente.

Uma das intervenções de Isabel Castro Silva que mais me impressionou foi a constatação da frieza dos números relativos à presença das mulheres no panorama literário português, "uma estatística muito informal, feita a partir da informação disponível na internet", que Isabel Castro Silva teve a gentileza de me enviar por e-mail após o evento no Fólio. Ei-los:

  • Na colecção Livros essenciais de autores portugueses do Diário de Notícias: 45 títulos, dois de mulheres;
  • Autores da TVI: 40 autores dos quais sete mulheres;
  • Notas de autor da TSF: 34 entrevistados, dos quais seis mulheres.
  • O Cânone (eds. Miguel Tamen, António Feijó, João Figueiredo): 48 autores, 39 homens e nove mulheres;
  • Prémio Nobel da Literatura: 119 laureados, 17 mulheres vencedoras;
  • Prémio Saramago: 11 edições, duas mulheres vencedoras;
  • Prémio Oceanos: 18 edições, três mulheres vencedoras;
  • Prémio Leya: nove laureados, uma mulher vencedora;
  • Prémio Camões: 33 laureados, sete mulheres;
  • Prémio Pessoa (ciências, artes ou literatura): 36 laureados, sete mulheres (uma em ex-aequo);
  • Bolsas de Residência Literária Eça de Queiroz: seis vencedores, entre eles, apenas uma mulher. Os quatro suplentes também são homens.

A bandeira da igualdade de género na literatura e na sociedade em geral precisa de continuar hasteada. A dinâmica do poder desigual do patriarcado continua a moldar as relações entre homens e mulheres, o que se traduz em problemas sociais, incluindo a violência doméstica, assédio sexual e desigualdade salarial. Ignorar estes factos é garantir que a mudança tardará.

A escrita e o activismo de Virginia Woolf continuam a inspirar até hoje. A independência e a estabilidade financeira são essenciais para a expansão do lado criativo das mulheres, quer seja na escrita ou noutras formas de expressão artística. Assim como é crucial que haja espaço para o reconhecimento e a visibilidade. Sem isso, de nada valerá ter um quarto só meu.

Sugerir correcção
Comentar