Apelo aos médicos: manifestem-se por justas causas, mas sem tomar reféns

Ao fazer greve à maneira funcionária, nós, médicos, tomamos os doentes por reféns das nossas reivindicações, em vez de tentar que estes nos apoiem.

Numa rara semana sem greves dois médicos discutem a próxima:

– Então sempre vais fazer greve?

– Vou, esta situação é insuportável.

– Claro, mas, como médico, não te incomoda esta forma de greve que toma os nossos doentes por reféns?

O que singulariza a tomada de reféns é o facto de, neste crime, a vítima... ser reduzida ao papel de puro objecto ou instrumento."

– Mas a lei da greve … impõe serviços mínimos que os grevistas cumprirão.

–​ Repara que o Regulamento de Deontologia Médica da Ordem reduz “serviços mínimos” a “cuidados inadiáveis”. Sentes-te confortável com tão mínimos critérios deontológicos?

– …

– E não te parece infringir o Juramento que fizeste [A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação. (..) Não permitirei que condições de idade, doença ou deficiência, religião, origem étnica, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, condição social ou qualquer outro factor intervenham entre o meu dever e os meus doentes]? Não estarás a fazer greve a Hipócrates?

– Mas qual é a alternativa?

–​ Há que procurá-las. Como agora, em 1923, sucediam-se as greves; num tribunal faltava quase tudo, nem tinta havia. O juiz Carmona lavrou a sentença a lápis e enviou-a ao tribunal superior com uma nota: “Escrevo a lápis por não haver tinta”.

Foi a sua maneira de protestar; foi censurado mas conseguiu tinta para o tribunal.

O objectivo da greve era forçar o patrão a atender às reivindicações dos grevistas, uma táctica inventada pelo operariado do sec XIX; não criavam escudos humanos entre eles e o patrão.

Ao fazer greve à maneira funcionária, nós, médicos, tomamos os doentes por reféns das nossas reivindicações, em vez de tentar que estes nos apoiem. Claro que tratamos os doentes graves; mal fora – até os piratas do ar libertam os passageiros doentes….

É verdade que a grande maioria dos médicos do SNS tem razões de sobra para protestar e reivindicar condições de trabalho dignas para melhor exercer a sua função. Mas creio que muitos médicos, como tu, se sentem contrafeitos ao participar neste tipo de greve.

Para resolver este diferendo – defender uma causa justa sem prejudicar os doentes – há que inventar uma alternativa à greve funcionária.

Elysio de Moura (UC), primeiro Bastonário da Ordem dos Médicos ficaria encantado.

Recordo uma com provas dadas: há 25 anos, uma sala de operações do Hospital Pediátrico de Coimbra ficou inutilizável; passou muito tempo sem que os doentes pudessem ser operados. Os ortopedistas do Serviço (dr. Jorge Seabra) convocaram uma conferência de imprensa para mostrarem o que poderiam ter operado nessa manhã.

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Os media divulgaram amplamente essa iniciativa a que chamaram "operação Mãos Limpas" com uma célebre fotografia dos ortopedistas com as mãos enluvadas erguidas e abertas (incluída no Anuário fotográfico desse ano).

No dia seguinte, a ministra Maria de Belém Roseira telefonou a prometer resolver o problema; e cumpriu.

Poderia acontecer que este ministro da Saúde também telefonasse…

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