Escolhe o especialista e escolherás a doença

Quanto mais evoluímos no sentido da hiperespecialização mais necessitamos de médicos que vejam o doente como um todo.

Este é um aforismo que revela uma realidade muito portuguesa que é a de os doentes, perante algum sintoma que tenham, fazerem um autodiagnóstico e escolherem a especialidade a que se devem dirigir. No fim, saem muitas vezes com um diagnóstico de uma doença que não tem que ser necessariamente tratada por um especialista de órgão ou então com a resposta: "Isto não é do meu foro."

Os doentes esquecem que uma simples dor de cabeça pode realmente ser uma doença neurológica, mas pode ser um problema ocular, do ouvido, ou pode ser uma manifestação no cérebro de uma doença sistémica, como uma doença auto-imune, infeciosa, inflamatória ou oncológica. Os doentes esquecem que quando têm " dor no peito", o coração não é o único órgão que existe no tórax, também há os pulmões, o esófago, gânglios, nervos, vasos sanguíneos e outros e pode até ser uma dor reflexa de um problema abdominal.

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Paulo Pimenta

O hábito de consultarem em primeiro lugar um especialista de órgão ou sistema (com algumas exceções, como oftalmologia ou ginecologia) tem três problemas: pode atrasar o diagnóstico de uma doença cujo prognóstico piora com este atraso (e, na minha prática, casos desses são diários); fica mais caro, porque geralmente induz a que os doentes sejam sujeitos a mais exames, por vezes desnecessários; e pode colocar questões de segurança, porque, quando um doente com várias patologias é tratado por uma cooperativa de especialistas em órgãos, não é abordado como um todo. Esta abordagem holística é imprescindível, porque muitas vezes tem que se negociar prioridades, de acordo com os objetivos de vida do doente, ter em atenção possíveis interações medicamentosas e compreender que um doente não é a soma dos órgãos ou sistemas que o compõem, é um ser único que tem um componente físico e mental que se influenciam mutuamente.

Cada pessoa deve ter um médico assistente a quem deve recorrer em primeira mão, que avaliará se é necessário o recurso a um especialista de órgão ou sistema e, se for, a ajudará na escolha orientada para a especialidade certa, para o sítio certo e para o médico certo. Esta cooperação assegura os melhores resultados. Isto é tanto mais importante quanto se assiste a uma fragmentação das especialidades, com uma progressiva hiperespecialização, que é inevitável perante o ritmo do crescimento do conhecimento médico, mas que torna mais difícil o doente navegar no sistema de saúde.

Já escasseiam, por exemplo, cardiologistas generalistas: uns são arritmologistas, outros cardiologistas de intervenção, outros ecocardiografistas, outros especialistas em risco cardiovascular. Os ortopedistas estão cada vez mais especializados numa das articulações do sistema osteoarticular e o mesmo se passa com outras especialidades. Isto é mau? Não, é bom e é inevitável. O problema é que os doentes que temos que tratar evoluem no sentido contrário: são cada vez mais idosos, com multimorbilidade e cada vez mais complexos. Quanto mais evoluímos no sentido da hiperespecialização mais necessitamos de médicos que vejam o doente como um todo.

Este não é um problema apenas da Medicina, é um problema que enfrentam todas as áreas do conhecimento. Como conciliar a visão hiperespecializada de uma realidade com a visão do todo? Imagine-se uma cidade, a diversidade de conhecimentos que são precisos para pensar a cidade; no entanto alguém tem que ter uma visão global para a cidade e coordenar a intervenção de todos os especialistas. São os sintetizadores, como os denominou Edward Wilson no livro Consilience. No mesmo ano, 1998, Edgar Morin escrevia no livro Relier les connaissances. Le défi du XXIe siècle: “Existe uma inadequação cada vez maior, profunda e grave. De um lado, um saber fragmentado em elementos separados e compartimentados nas disciplinas; de outro lado, realidades multidimensionais, globais, transnacionais, planetárias e problemas cada vez mais transversais, polidisciplinares, ou seja, transdisciplinares”.

Por outro lado, para algumas patologias, existe uma relação entre a experiência de determinado centro no tratamento dessa patologia e os resultados que obtém, exigindo uma casuística mínima para garantir resultados com qualidade, pelo que o aconselhamento sobre a escolha da equipa é também importante. Naturalmente que sabemos que, quando um doente recorre ao médico já procura uma segunda opinião, porque já procurou a primeira opinião no Google, mas a qualidade da informação nem sempre é boa, nem tudo está ali escrito e nada substitui a relação médico-doente e a capacidade do médico de lidar com a complexidade de cada doente.

Quais são as especialidades com mais preparação para serem médicos assistentes? Em primeiro lugar os especialistas de Medicina Geral e Familiar e depois os pediatras para as crianças e os internistas para os adultos. Estas duas especialidades têm a experiência dos hospitais, onde asseguram os cuidados nas enfermarias, nas urgências, em unidades especializadas, nas consultas, nos hospitais de dia, e estão assim preparados para as doenças quando surgem complicações e nas fases mais graves ou críticas. Os internistas, em particular, estão mais vocacionadas para os doentes adultos complexos, com doenças sistémicas, doentes sem diagnóstico ou com multimorbilidade, estando naturalmente capacitados para tratar também a maior parte das doenças de órgão ou sistema.

Numa altura em que os recursos escasseiam no sector da saúde, os custos aumentam e o dinheiro é cada vez menos, ter um médico assistente é a melhor forma de racionalizar os cuidados e poupar, com uma assistência clínica com mais qualidade e segurança.

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