Ordem chumba criação da especialidade de medicina de urgência

Há dois anos que a criação desta nova especialidade médica estava em debate na Ordem dos Médicos. Votação na Assembleia de Representantes terminou com 51 votos contra, 21 a favor e três abstenções.

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Nas últimas semanas, os constrangimentos em várias urgências têm sido notícia Nuno Ferreira Santos

A criação da especialidade de medicina de urgência foi chumbada, depois do voto contra da Assembleia da Representantes – um órgão interno da Ordem dos Médicos com competência para criar especialidades, que se reuniu esta segunda-feira.

Há dois anos que o tema estava em debate na Ordem dos Médicos. De acordo com o que foi possível apurar, a votação na Assembleia de Representantes terminou com 51 votos contra, 21 a favor e três abstenções. “A Assembleia de Representes chumbou a proposta. Acharam que neste momento a criação da especialidade não era oportuna. Para já, da nossa parte, o processo fica fechado”, disse ao PÚBLICO o bastonário Miguel Guimarães.

Nas últimas semanas, os constrangimentos sentidos em várias urgências, com especial incidência na região da Grande Lisboa, têm sido notícia, devido aos elevados tempos de espera. Questionado pelo PÚBLICO sobre o chumbo desta proposta, o presidente da secção regional Sul da Ordem dos Médicos, Alexandre Valentim Lourenço, considerou que este chumbo pode ser “uma oportunidade para não perder o foco e melhorar a proposta para resolver o problema das urgências a médio e longo prazo”. “É muito legitima a vontade das pessoas que trabalham nas urgências de terem mais qualidade na formação para tratar melhor os doentes.”

O chumbo da proposta poderá não significar o fim de uma futura especialidade de medicina de urgência. Uma nova proposta poderá ser colocada à discussão no futuro e o Governo e a Assembleia da República podem tomar a iniciativa de propor a criação da especialidade. Foi o que aconteceu com a especialidade de medicina intensiva, cuja proposta foi chumbada na Assembleia de Representantes mas acabou por ser criada por iniciativa do Parlamento.

Durante a tarde, no final da sessão de apresentação da Direcção Executiva do Serviço Nacional de Saúde, o ministro da Saúde foi questionado sobre como se pode resolver o problema das urgências. Manuel Pizarro afirmou que a resposta tem de passar por "criar portas diferentes para as pessoas acederem com facilidade a cuidados de saúde", entre as quais a eventual criação da especialidade de medicina de urgência.

Durante a discussão na Assembleia de Representantes – cujos elementos eleitos representam as várias regiões e têm diversas especialidades - foram colocadas várias questões e existiram intervenções dos colégios de medicina interna, de medicina geral e familiar e de pediatria, que se mostraram contra a criação desta especialidade.

"Íamos colher frutos daqui a cinco anos"

A proposta da criação da especialidade foi apresentada, em 2019, pelo colégio da competência de emergência médica ao conselho nacional da Ordem dos Médicos, que aprovou a criação de um grupo de trabalho. Este grupo elaborou a proposta de currículo para a especialidade, que teria cinco anos de formação, que foi colocada a discussão. O presidente da competência de emergência médica, Vítor Almeida, lamentou a posição assumida pelos presidentes dos colégios de medicina interna, medicina geral e familiar e pediatria.

“Houve um alinhamento claro contra aquilo que achamos ser um pilar fundamental para os problemas da área assistencial da urgência, da qualidade que podemos dar aos doentes. Os argumentos apresentados no geral carecem de fundamentação científica. Quase todos estavam relacionados com o modelo organizacional, laboral e salarial. A Assembleia da Representantes é soberana, temos de aceitar este voto”, disse, considerando que não representa a maioria dos médicos nem dos portugueses que se confrontam com os problemas nas urgências.

“A especialidade não ia resolver os problemas de imediato, mas ia criar quadros próprios bem formados que podiam acudir a qualquer situação de urgência. Íamos colher frutos daqui a cinco anos”, disse, lamentando que Portugal se mantenha como um dos quatro países europeus que não tem a especialidade de medicina de urgência médica. “Hoje foi proposto um modelo de formação que ia permitir mais qualidade e menos mortes evitáveis”, disse, reforçando que a proposta estava “devidamente estruturada nos saberes exigidos a nível europeu”.

Adelina Pereira, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina de Urgência e Emergência, assume que “é com tristeza e preocupação” que viu o resultado desta votação, considerando que a criação da especialidade seria “uma mais-valia para todos os doentes que recorrem à urgência”.

“A criação da especialidade não tem por finalidade afastar ou substituir algumas especialidades, mas de sim de colmatar. A urgência é o único serviço clínico onde é permitido que trabalhem médicos sem especialidade”, disse, a propósito da oposição demonstrada pelas especialidades de medicina interna e medicina geral e familiar.

Adelina Pereira assume que a criação não resolveria o problema das urgências. “São dois problemas diferentes. Um são as pessoas [recursos humanos médicos] e outro a organização. Mas mesmo para a organização é preciso capital humano. Não será com médicos jovens, que estão temporariamente nas urgências, que vamos promover a mudança”, referindo-se à existência de médicos indiferenciados nas urgências.

“A criação da especialidade é um futuro adiado. Acredito que o que foi discutido hoje tem de ser repensado”, disse, referindo ter recebido muitas mensagens de colegas preocupados com o resultado da votação.

A criação desta especialidade era apoiada por vários médicos, incluindo 56 antigos e actuais directores de serviço de urgência, que apresentaram um manifesto a favor. "Infelizmente, do meu ponto de vista, essa votação foi negativa, inviabilizando-se assim aquilo que era uma oportunidade única de mudar o paradigma nacional no que diz respeito aos cuidados de saúde urgentes. Vamos continuar este nosso caminho de luta pelos interesses dos doentes", disse à agência Lusa Nelson Pereira, director da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do Centro Hospitalar de São João e impulsionador do manifesto feito pelos 56 médicos.

"Seria criar uma especialidade de consulta única"

Um dos opositores à criação da especialidade foi Jorge Amil Dias, presidente do colégio de pediatria da Ordem dos Médicos, que considera existirem dois níveis discussão neste assunto. “Um deles é a criação da especialidade, que tem de ser algo que representa algum conhecimento técnico diferente do que já existe. Uma coisa diferente é discutir como se organiza a urgência e se resolve o caos. Querer confundir uma coisa com a outra, que com a criação da especialidade se resolve a organização do serviço, é prometer o que não se pode cumprir.”

Para o médico existiria um “problema científico ao criar uma especialidade em que os médicos só viam o doente uma vez”. “Não sabem se acertam no diagnóstico, se o tratamento prescrito foi eficaz. Seria muito mau, porque seria criar uma especialidade de consulta única”, aponta.

Salientando que esta é uma área penosa, questiona o que aconteceria aos médicos que ao final, por exemplo, de cinco anos quisessem deixar de fazer urgências e que “depois não teriam alternativa, porque só têm aquela especialidade”. E é, por isso, que considera que faz sentido a criação de uma subespecialidade – o que foi proposto pelo colégio de pediatria -, pois os médicos poderiam voltar às outras áreas da pediatria.

“Criar uma especialidade que faz o mesmo que as outras, para nós é absurdo”, considerou, acrescentando que aos 55 anos os médicos estão dispensados que fazer urgências. “O que iam estes médicos fazer? Reformar-se-iam mais cedo?”, questiona, explicando que outra objecção tem a ver com o facto de se a especialidade fosse aprovada não se poder garantir que não seria aplicada nas urgências pediátricas. “Não se pode garantir o que será a decisão do empregador.”

O PÚBLICO tentou chegar à fala com o presidente do colégio de medicina interna da Ordem dos Médicos, mas sem sucesso.

A proposta também não colhia o apoio da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, que considerou inoportuna a criação desta especialidade nesta fase. "Neste momento, não é oportuno [a criação da nova especialidade] e há outras alterações e medidas estruturais que devem ser tomadas antes de se analisar a necessidade dessa especialidade. Para já, não concordamos e até nos opomos à criação da nova especialidade. Achamos que primeiro temos de organizar ou reorganizar o SNS", disse à Lusa a presidente Lélita Santos, em vésperas da votação.

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