Sonambulismo a beira do abismo: um ano do conflito Rússia-Ucrânia

Vamos repetir o erro da I Guerra Mundial, quando – por interesses imperialistas – se deixou que um conflito sobre fronteiras nos Balcãs viesse a matar dezenas de milhões em todos os continentes?

Um ano após o início da guerra na Ucrânia, o tempo já começa a se esgotar. O aumento das tensões e o risco de um conflito mundial de maiores proporções conduzem a Europa a um ultimato. Que caminhos?

O primeiro-ministro de Portugal em entrevista ao PÚBLICO defende que “a paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia”. António Costa sustenta que “ninguém tem legitimidade para impor aos ucranianos o momento em que têm de aceitar sentar-se à mesa” de eventuais negociações para um cessar-fogo.

Também o filósofo Slavoj Zizek defende o direito à autodefesa ucraniana; comparando-a com o caso da Palestina. Ninguém pode ficar neutro, diz. Contudo, não se pode esquecer que a NATO nunca doou tanques e mísseis para Palestina se defender de Israel. Nesse interregno, o conflito a cada dia que passa tem se tornado muito mais uma disputa imperialista e global.

Chamado de “putinista” em canais de comunicação alemães e por membros do governo ucraniano por seu recente artigo traduzido e publicado no El País, Jürgen Habermas, um dos filósofos mais respeitados da atualidade, argumenta que, ainda que seja indubitável o direito da Ucrânia a se defender e que o apoio para tal deve ser mantido, é urgente que sejam delimitadas as estratégias de negociação para acabar e controlar o conflito internacional. Afinal o que significa “ganhar a guerra” ou “derrotar” a Rússia? A que preço pode vir essa vitória ou derrota? Quem ganha e quem realmente perde com o agravamento das tensões num conflito mundial hoje?

Para Habermas, é preciso considerar os riscos humanitários da expansão da guerra – bem como a co-responsabilidade do Ocidente na destruição da Ucrânia; já que cada civil ucraniano morto é resultado também da recusa do Ocidente em procurar outros meios de resolver o conflito e a insistência em continuar alimentando uma resposta sangrenta com armas cada vez mais pesadas A NATO já decidiu o envio de tanques de última geração. Está a ponderar o envio de caças, enquanto a Rússia declarou sair do tratado de controlo de armas nucleares enquanto testou um novo míssil ICBM, e assim, a cada dia que passa, avista-se o aumento das tensões a nível global.

Contra a suposta “Aliança das Democracias” à volta da NATO avista-se uma suposta “Aliança Anti-imperialista” à volta do Eixo China-Rússia. Digo suposta, porque nem os EUA são conhecidos por grandes defensores da democracia no mundo, nem a China e a Rússia resistem às próprias tendências imperiais. Da parte do Ocidente, seria, no entanto, um erro confiar no isolamento dos últimos.

Uma crescente parte do mundo olha com bons olhos uma derrota da hegemonia económico-militar americana, o que se pode constatar pela relativa inefetividade das sanções anti-russas, porque estes têm encontrado outros parceiros económicos. Basta lembrar que na última semana China e Rússia olharam com bons olhos a proposta de uma moeda única conjunta com o Brasil, África do Sul e Índia e que a Rússia e China organizaram exercícios militares conjuntos com a África do Sul.

Será que é necessário a guerra chegar ao Ocidente da Europa para o surgimento de um movimento de paz? Quem estará disponível para sacrificar sua vida na Europa num conflito internacional que se avista? Vamos repetir o erro da Primeira Guerra Mundial, quando – por causa de interesses imperialistas – se deixou agravar um conflito sobre fronteiras nacionais nos Balcãs para um conflito que matou dezenas de milhões em todos os continentes? O que tinham naquela altura os camponeses portugueses que morreram em 1917 a ver com os direitos linguísticos dos bósnios? Será que a próxima geração vai aprender sobre como um desastre nuclear global teve suas origens no Donbass?

Houve um dia em que as Nações Unidas foram fundadas para resolver tais conflitos. Hoje, a ONU é um “sitting duck”. É pena, porque uma solução deste conflito, dentro do atual direito internacional passa necessariamente por um consenso no Conselho de Segurança – e, portanto, por um acordo entre Estados Unidos, França, Reino Unido, China e Rússia (e não necessariamente pela Ucrânia). Uma solução de consenso poderia talvez existir pela retirada da Rússia para as fronteiras de antes de fevereiro 2022, perdendo o território ilegalmente - mas efetivamente - anexado em troca do reconhecimento da soberania Russa sobre a Crimeia e uma Ucrânia militarmente neutra. O Donbass poderia ficar a pertencer a uma Ucrânia federalizada, como zona desmilitarizada e ocupada por uma força da ONU de capacetes azuis. Ao mesmo tempo poder-se-ia abrir a possibilidade de essa Ucrânia federal pacificada – e com respeito por minorias - um dia pertencer à União Europeia, em troca do desmantelamento das sanções anti-russas

Conjeturas à parte, nessa era de globalização ouvimos muito falar de um novo imperialismo. O velho imperialismo dos EUA, no passado utilizou dezenas de vezes a sua “responsabilidade de proteger” para garantir os seus interesses económicos e geoestratégicos – Vietnam, Coreia, Afeganistão, Jugoslávia, Kuwait. Agora que a Rússia descobriu a mesma fórmula, e o imperialismo Americano encontra na China uma potência à sua altura a nível económico e militar – estaremos no caminho de um mundo multipolar, dominado por uma doutrina militar de guerra sem fim em objetivos e no tempo. Até quando?

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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