A roupa e o poder da repetição

Repetir é, hoje, uma opção de vida: ter menos e usar mais ou seja, comprar cada vez menos e usar o que temos.

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"Importa encontrar o nosso estilo, perceber o que nos assenta bem" ALESSANDRO GAROFALO/Reuters

Há um certo estigma na repetição mas repetir sem vergonha, ou hesitação, pode ajudar a resolver alguns dos problemas da indústria da moda.

Repetir pode representar falta de criatividade ou opção o que, por outras palavras, talvez demonstre que temos pouca roupa e tudo o que isso pode, socialmente, querer significar. Contudo, longe vão os tempos em que definíamos a nossa classe social através da roupa que vestíamos.

A fast fashion democratizou a moda e até as princesas se rendem aos encantos fast. Repetir é, hoje, uma opção de vida: ter menos e usar mais ou seja, comprar cada vez menos e usar o que temos; comprar cada vez melhor e multiplicar o número de vezes que usamos as mesmas peças de roupa. Vamos ver como.

O desafio das malas de cabine

Mais por necessidade do que desafio, escolhi viver com a roupa que cabe em duas malas de cabine. Com excepção dos casacos de Inverno que, pelo volume, ocupariam uma das malas, está lá tudo: dos sapatos à roupa interior, camisolas de lã e roupa de desporto, provando que podemos viver — muito bem — com menos.

Tenho vindo a documentar o processo no Instagram, partilhando alguns dos looks que resultam desta limitação de escolhas, que depende apenas da nossa capacidade de improviso e gestão.

Apesar do volume dos casacos, o Inverno tem a vantagem de permitir lavar menos vezes as grandes peças exteriores, garantindo mais roupa para variar as combinações. Os mesmos jeans podem reinventar um look, da mesma forma que uma camisola, usada com uma saia ou calças, ganha uma nova vida.

Os acessórios — um fio ou colar, bem como um cachecol ou lenço — alteram por completo o aspecto de uma camisola e transformam um look que pode ter sido usado dias antes.

Os sapatos contribuem activamente para este processo de reinvenção da repetição: umas botas de tacão ou uns botins rasos mudam radicalmente o aspecto de uma combinação de jeans e camisolão de lã.

Se a isto juntarmos um casaco ou blusão, então, em vez de dois outfits, teremos quatro. E assim sucessivamente.

(Re)combinando lenços e cachecóis, botas e botins, com casacos ou blusões, temos opções quase infinitas para os mesmos jeans, por exemplo. Infinitas talvez seja demais mas, se multiplicarmos por todas as peças de roupa que conseguimos colocar nas duas malas de cabine, então a repetição faz parte do processo, embora a repetição do mesmo outfit aconteça raramente.

Hashtag repeat

Ao contrário dos insta-hauls ou dos tik-tok-hauls que, constantemente, apresentam coisas novas, ignorando o que já existe naquele roupeiro, a tendência actual é a da preservação ambiental, da consciência social e da repetição.

Ainda que estejam sempre a chegar novidades às lojas e as redes sociais digitais estejam em permanente mutação, com tendências — perdão, #trends — que se atropelam umas às outras, há outra tendência que lentamente faz uma espécie de #comeback: a repetição. Chama-se #rewear (re-usar) e vem contrariar a ideia de que quem repete roupa é pobre.

Antes era assim e fomos felizes. Questiono-me se seremos, agora, mais felizes, com gavetas cheias de tanto que raramente usamos, ou se poderemos voltar a ser felizes adoptando um estilo de vida que repete a roupa que vestimos, em dia de festa ou no dia-a-dia, sem transformar o nosso estilo numa espécie de farda que é igual todos os dias.

Longe da vista, longe do coração

Afirmar que a moda actual é insustentável não acrescenta muito à vida de ninguém porque o pior acontece lá longe. Sobretudo, longe dos nossos olhos, deixando-nos a pensar que, afinal, não é assim tão grave. Longe da vista, longe do coração.

É assim tão grave porque, de acordo com a Business of Fashion (BoF), semanalmente cerca de 15 milhões de peças de roupa são enviadas para o Gana. Provavelmente também para outros países na mesma latitude, num descarte que nos livra do que já não queremos, enquanto soterramos outros, que também não o querem.

Há urgência na denúncia dos factos: a indústria da moda criou uma estratégia bonita, de roupa em segunda mão, quando, efectivamente, desenvolveu uma fórmula para descartar lixo, enviando-o para países que, assim, destroem a sua diversidade e riqueza ecológica e ambiental. No Gana, por exemplo, a roupa descartada amontoa-se ao longo da costa, em praias de areia branca e aterros que contribuem para poluir os lençóis de água com os químicos dos têxteis descartados.

Uma estratégia bonita? É, sobretudo, quase invisível. À primeira vista está a alimentar a economia destes países e dos seus mercados de roupa em segunda mão que são, agora, mercados de roupa velha que ninguém quer. Os dados são da Or Foundation que leva a cabo a campanha #stopwastec%nialism, sobre a pressão do lixo nos países em vias de desenvolvimento. Para quem não sabe, os países mais ricos enviam o seu lixo — além da roupa — para países em vias de desenvolvimento que ficam com a responsabilidade de o tratar, reciclar e fazer desaparecer. Só que não desaparece. Está apenas longe da vista. Da nossa vista.

Repetir. Repetir. Repetir

Pessoalmente, nunca pensei muito no poder da repetição porque sempre repeti roupas e combinações de roupas. Talvez não de forma consciente, estava a adoptar um estilo de vida que defende exactamente a ideia de repetição como parte da solução. E quero muito contribuir para a solução dos problemas que, colectivamente, enfrentamos: somos mais do que os que conseguimos alimentar e do que o Planeta consegue suportar.

A título individual é pouco o que podemos fazer mas se todos alterarmos uma pequena coisa, um comportamento, uma atitude e contribuirmos para mudar a de alguém, então estaremos, colectivamente, a fazer muito.

E repetir é fácil, sobretudo se gostarmos verdadeiramente das peças de roupa que estamos a usar. Esse é o segredo: gostar do que estamos a vestir, independentemente de tendências, modas ou do que nos dizem nas redes sociais digitais.

Importa encontrar o nosso estilo, perceber o que nos assenta bem, o que nos define como pessoa e construir um guarda-roupa (cápsula, ou não) com base nessa definição. Com cores, padrões e cortes que nos representam sem excepção. Eventualmente, uma ou outra peça diferente mas que também nos define.

Este segredo é também o mais difícil no processo que nos leva à repetição. Somos de tal forma bombardeados de informação contraditória sobre o que vestir, o que está a dar e o que está completamente fora que acabamos reféns do que nos dizem, sem pensar no que nos faz sentir bem.

E o que nos faz sentir bem é o que apetece vestir sempre (ou quase), com aqueles apontamentos que adoramos mas só queremos vestir em momentos especiais, e as outras peças que só nós gostamos e que, mesmo assim, arriscamos porque nos fazem sentir bem. Independentemente do que o outro, seja quem for, possa dizer. Por isso, repetir.

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