“Vinho natural é o que é produzido de forma artesanal, sem quaisquer aditivos”

Angiolino Maule, pioneiro na produção de vinho como produto artesanal no Veneto, em Itália, é o convidado especial do Simplesmente... Vinho, que vai decorrer no Porto de sexta a domingo.

Foto
Angiolino Maule Lorenzo Rui

Angiolino Maule é um homem realizado. O mentor e fundador da VinNatur foi pioneiro na produção de vinho como produto artesanal, apenas com o que a terra dá, a experiência e sabedoria do homem como parte do terroir. É em La Biancara, a sua propriedade na região do Veneto, no nordeste de Itália, que sente ter concretizado o sonho de fazer vinhos naturais e ao mesmo tempo bons. É o convidado especial do Simplesmente… Vinho 2023, a decorrer de 24 a 26 de Fevereiro na Alfândega, no Porto.

Diz que o importante é fazer o vinho apenas com a matéria-prima que se encontra dentro da vinha, sem o uso de cobre, enxofre ou quaisquer aditivos, tanto na vinha como na adega. Mas avisa que “o vinho não se faz sozinho, isso é um absurdo que por vezes se associa à ideia de vinhos naturais”.

Começou por fazer pizas mas depressa se mudou para a produção de vinho. Como é que um pizzaiolo se transforma em vigneron?
Quando, aos 23 anos, decidi aprender a fazer pizas tinha já uma ideia muito clara de poder ganhar algum dinheiro para depois investir na vinha. Em 1977 abri uma pizaria e em 1979 comprei a Biancara, a nossa vinha inicial, com quatro hectares, que dá o nome à propriedade.

Fazer pizzas, pelos vistos, era um bom negócio. E com o vinho, é igualmente rentável?
Agora sim. Temos 20 hectares e fazemos à volta de 150 mil garrafas que vendemos a um preço médio de 9 euros.

E o que o levou a optar por Gambellara, no Veneto, e não qualquer outra região?
É o lugar onde nasci, a escolha estava assumida desde sempre. Foi um regresso a casa para trabalhar com a Garganega, a casta que conhecia. Creio que sou agora um especialista da Garganega, mas o facto é que não conheço outras castas. Isto apesar de ter também um pouco de Merlot e de Grenache.

Foto
Angiolino Maule dr

Começou pela produção orgânica, depois biodinâmica, mas quis criar a VinNatur. Não era suficiente?
Não é que não fosse suficiente, mas à medida que avançamos chega-se à conclusão que há depois outras coisas para descobrir. O objectivo é conseguir produzir as uvas sem a utilização de quaisquer produtos, fazermos o vinho apenas com a matéria-prima que se encontra dentro da vinha, sem o uso de cobre, enxofre ou quaisquer aditivos, tanto na vinha como na adega. Não no sentido em que o vinho se faz sozinho — isso é um absurdo que por vezes se associa à ideia de vinhos naturais —, mas antes em que seja um produto da terra, transformado pela cultura, experiência e sabedoria do homem na sua acção com a natureza e como parte do terroir. Ou seja, sem intervir, mas apoiando-nos nas diferentes fases da produção, potenciando agentes naturais que possam ser auto-suficientes contra os elementos patogénicos que possam agredir a vinha ou o vinho.

O que entende como um vinho natural?
É aquele que é produzido de um modo artesanal, sem quaisquer aditivos tanto na vinha como na adega, que não leva sulfuroso ou conservantes e é capaz de se manter ao longo de 15 ou 20 anos. Há mais de dez anos que na nossa adega fazemos os vinhos sem comprarmos nada além das rolhas e das garrafas. Um vinho natural não deve ter qualquer resíduo de pesticidas. Na associação a que presido [a VinNatur], há 14 anos que fazemos análises de pesticidas, não só aos nossos associados mas também em vinhos convencionais. Temos um histórico de 1500 análises que mostram haver a presença de uma média de dez a 13 princípios activos de pesticidas nos vinhos convencionais. Não é que seja um veneno, mas actuam lentamente.

Em todo o caso, há agora uma grande tendência para a não-utilização de pesticidas, apenas o sulfuroso na protecção dos vinhos. Qual é a posição da VinNatur?
Estamos neste aspecto numa fase de transição. Estabelecemos uma regra que permite até 50 miligramas por litro de sulfuroso para os vinhos brancos e até 30 para os tintos. O objectivo é que seja uma regra dinâmica que possibilite aos produtores aprenderem técnicas, designadamente de fermentação, que lhes permitam deixar de recorrer aos sulfitos para proteger os vinhos. Não é um princípio, é uma regra transitória.

Mas com os vinhos naturais não há qualquer controlo, isso não é perigoso?
Essa é uma bela questão. É verdade, não há controlo, o vinho natural não está legislado, esse é um processo que diz respeito à indústria, aos grandes distribuidores e armazenistas. Nos vinhos naturais, a VinNatur é em todo o mundo a única entidade que tem controlo e regras definidas. Mas não somos nós a controlar, envolvemos uma entidade terceira, a Valoritália, que é a maior e mais dinâmica agência de certificação em Itália. Somos nós que pedimos e abrimos as nossas propriedades a esse controlo, um modelo que parte da base, que não é imposto de cima para baixo. O objectivo é expandi-lo ao nível nacional e depois europeu, e o importante é que não possa prejudicar a indústria.

Foto
Vindima em Biancara Lorenzo Rui

E não poderia aplicar-se também aos vinhos orgânicos e biodinâmicos, já que sem controlo nem garantias se tornam apenas uma questão de filosofia, não de qualidade?
Sim. Sem controlo é apenas uma questão de filosofia, mas não negam que não dispõem de fundos para fazer esse controlo. No nosso caso, financiamo-nos com as feiras e eventos que promovemos, dinheiro que vai pagar não só as análises e os inspectores, mas também o funcionamento da estrutura e os trabalhos de pesquisa e investigação que promovemos.

E o que procuram com essas pesquisas e investigações? Para que caminhos apontam?
O principal objectivo é fazer aquilo que dizemos, fazer vinhos artesanais contemporâneos, com paladar e que perdurem no tempo, sem necessidade de quaisquer aditivos, tanto na vinha como na adega. A procura é por um artesanato mais qualificado e conhecedor para trabalhar sem necessitar de atalhos químicos. Os erros e acidentes no processo de vinificação podem acontecer, especialmente em anos difíceis, mas devem ser a excepção. Os defeitos do vinho não são consequência da agricultura natural e da vinificação, resultam de erros do produtor, e é isso que é preciso prevenir.

E como é que que o fazem?
Com conhecimento, é para isso que promovemos estudos e investigação. Fazemos formação para os nossos produtores e uma reunião no final de cada ano para dar conta do trabalho desenvolvido. Temos também uma escola itinerante de viticultura natural com um grupo de agrónomos que vão até aos agricultores. Quem falha e não quer aprender tem de sair, é posto fora. É através de método e do conhecimento que se alcançam os objectivos, tanto qualitativos como sanitários.

Pode o consumidor identificar diferenças entre um vinho natural, biodinâmico, orgânico, biológico ou convencional?
Um belíssimo exemplo, tive-o recentemente no Japão, quando uma senhora esperou por mim para me oferecer uma peça de louça. Mas porquê?, perguntei. Porque sinto uma emoção quando bebo os teus vinhos, disse. Também numa enoteca um jovem dizia que os meus vinhos lhe transmitiam uma energia especial. É uma coisa que nosso ADN reconhece. Não é apenas quanta fruta, mineral, álcool, mas antes quanta emoção te proporciona um vinho, tem de transmitir emoção.

Foto
Angiolino Maule dr

Mas essa emoção também é muitas vezes manifestada pelos consumidores dos vinhos convencionais...
Porque há qualquer coisa que os inebria, e não deveria estar associada ao álcool. Os vinhos naturais não estão associados à cultura do álcool, mas antes à cultura do território. Vinhos que não estão apenas ligados à ausência de pesticidas ou sulfitos, mas algo que traz emoção, que te transporta até um lugar qualquer.

Publicou também um livro, A concretização de um sonho — como fazer vinho apenas com uvas. É uma espécie bíblia para os vinhos naturais?
Não, não. Longe disso. Quando acabei apetecia-me logo começar outro, há muitas coisas que não entraram. É uma coisa que fiz com o apoio de um grupo de especialistas, com prefácio de Carlo Petrini, o fundador do movimento Slow Food. Um manual para fazer vinho natural, da escolha dos solos às técnicas de cultivo e de trabalho na adega. Ideal para os jovens enólogos, acabados de sair da faculdade, ou para aqueles que são contra os vinhos naturais encontram ali muita informação.

Sugerir correcção
Comentar