Comboios que não cabem nos túneis causam turbilhão político em Espanha

Apesar de as novas automotoras estarem ainda em fase de desenho, a proximidade de eleições provocou duas demissões de alto nível. Para compensar, os comboios ficam gratuitos até, pelo menos, 2026.

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Pedro Sánchez já está debaixo de fogo pela polémica ferroviária. EPA/CHRISTIAN BRUNA

Ainda não havia um único comboio pronto, mas um erro detectado pelo fabricante na fase de projecto das 31 novas automotoras de bitola métrica foi suficiente para causar uma tempestade política em Espanha e as demissões, esta segunda-feira, da secretária de Estado dos Transportes, Isabel Pardo de Vera, e o presidente da operadora ferroviária estatal Renfe, Isaías Táboas. Se fossem construídos com as medidas indicadas no concurso, as automotoras não cumpririam as margens de segurança nos muitos túneis da rede asturiana e cantábrica.

Em Junho de 2019, a Renfe publicou a abertura de um concurso para renovar parte da frota de comboios de bitola métrica que circula no Norte de Espanha. Cerca de um ano depois, adjudicou o fabrico à construtora basca CAF, por 258 milhões de euros, definindo que o primeiro comboio tinha de chegar em Outubro de 2024. Mas é a própria construtora CAF que se apercebe de que as dimensões apresentadas pela Renfe, e que constam do directório de rede do gestor de infra-estruturas de Espanha (Adif), não batiam certo com os requisitos de segurança da própria rede, podendo vir a causar problemas em túneis e pontes.

O problema, que provavelmente teria ficado resolvido internamente sem danos de maior, dada a fase precoce em que se detectou o erro, saltou para a esfera mediática após uma notícia de jornal publicada no asturiano El Comércio. Foi a gota de água para os utentes da ferrovia espanhola, que se queixam de um abandono continuado da rede de bitola métrica por parte da Renfe e da Adif, a favor da rede de alta velocidade, que recebe o grosso do investimento público em Espanha.

Aí começa o jogo do empurra: a Renfe diz que só seguiu as medidas de gabarito apresentadas no directório de rede da Adif, e a Adif escusa-se com a Renfe, que não comprovou se as medidas estavam correctas para a operação ferroviária. Alegadamente, a origem dos problemas está nas intervenções que os vários túneis sofreram ao longo dos anos e que alteraram as margens para uma circulação em segurança, permitindo, por exemplo, uma correcta evacuação em caso de acidente.

Para acalmar as águas, o “gabaritogate” originou inicialmente a demissão do responsável de Inspecção e Tecnologia da Adif e do então responsável da Renfe pela área de gestão do material circulante. Mas o copo já tinha transbordado e a proximidade das eleições municipais e autonómicas originou as demissões da galega Pardo de Vera e do valenciano Isaías Táboas, já debaixo de fogo devido às sucessivas avarias na rede ferroviária da Extremadura.

Estas saídas tentam também passar, segundo a imprensa espanhola, uma mensagem de responsabilização política por parte da ala socialista do Governo, depois de não terem existido demissões motivadas pelo fracasso da “Lei do só sim é sim”: uma proposta do Unidas Podemos que tem levado à revisão em baixa de penas de condenados por crimes de agressão sexual.

Para não falharem na concepção dos novos comboios, a CAF vai agora utilizar o método comparativo, que ainda não tinha sido experimentado em Espanha. No fundo, a fabricante vai pegar num dos actuais comboios da rede para o usar como referência para os novos modelos. A nova solução atrasa todo o processo em, pelo menos, três anos.

Astúrias, Cantábria e País Basco apresentam uma densa rede ferroviária de proximidade, com comboios a servirem muitas das vilas e aldeias da região. No entanto, uma política de desinvestimento continuado desde que o Governo de Espanha extinguiu, a 31 de Dezembro de 2012, a antiga FEVE — responsável pela operação da maioria das linhas de bitola métrica — unindo na Renfe toda a operação ferroviária, tem levado a críticas de responsáveis políticos e de utilizadores, que se queixam da acentuada degradação do serviço, com menos horários e tempos de percurso maior. Por exemplo, entre Ferrol e Oviedo o comboio demora hoje mais meia hora do que em 1999.

Agora, e sem conseguir dar aos asturianos e cantábricos comboios novos antes de 2026, a ministra dos Transportes, Raquel Sánchez, que diz ser a “primeira indignada” com esta polémica, apressou-se a prometer comboios gratuitos até chegarem os novos. Foi também assinado um pacto com os presidentes dos governos regionais das Astúrias e da Cantábria que promete um investimento significativo para modernizar a rede de bitola métrica, um número maior de horários e a uniformização da bilhética entre a rede convencional em bitola ibérica e a de bitola métrica, que actualmente funcionam de forma segregada. Também ficou previsto que a encomenda dos 31 comboios seja ampliada para o máximo de 38 e definido que será feito um novo concurso para comprar mais material circulante de via estreita.

Para o cargo de presidente da Renfe foi escolhido o político socialista catalão Raül Blanco, um nome estranho à empresa ferroviária espanhola, e o madrileno David Lucas Parrón passa da Agenda Urbana e Habitação para a Secretaria de Estado dos Transportes.

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