Restituição: o regresso do exílio

O processo de restituição de artefactos e restos mortais trazidos das ex-colónias passou das promessas aos actos. Mas, ao contrário de outras antigas potências coloniais, em Portugal reina o silêncio.

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Máscara cerimonial de marfim do século XIX em homenagem à rainha-mãe Idia, que foi saqueada por soldados britânicos no Benin, em 1897. Esta peça foi mostrada na exposição Where Is Africa, no Linden Museum, em Estugarda, Alemanha, em 2021 Thomas Niedermueller/Getty Images

As reclamações de artefactos e restos mortais de origem colonial iniciaram-se no século XIX de forma esparsa e pouco consequente, mas começaram a ter consequências no século XX, nomeadamente a partir da convenção da UNESCO de 1970, que obriga à restituição dos objectos que foram trazidos ilegalmente das ex-colónias. A maioria das reclamações pela restituição foi protagonizada por pessoas, povos e, depois, por governos de territórios colonizados.

Vários testemunhos evidenciam a consciência da apropriação indevida e de forma violenta que destruiu o património ancestral, material e simbólico de povos e nações, e provocou um sentimento de amnésia colectiva, de perda de identidade e de valor artístico e religioso. O estudo destes testemunhos reforça que a maioria destas pilhagens fazia parte de projectos imperiais executados por missões militares respaldadas por missionários e etnólogos em disputa sobre as posses coloniais dos vários museus e governos imperiais como a Alemanha, o Reino Unido, a França, a Bélgica, os Países Baixos e Portugal, à sua pequena escala.

As actuais reclamações provêm sobretudo de países africanos, mas também de países da América Latina, Índia, China, Austrália e de povos originários do Canadá e dos EUA. Deve ainda acrescentar-se a reclamação de patrimónios entre os países europeus e as pilhagens nazis. Para um estudo detalhado deste processo histórico consultem-se as obras de Jos van Beurden, em particular Treasures in Trusted Hands, Negotiating the Future of Colonial Cultural Objects (2017).

Em todos os casos estes artefactos constituem troféus e decorrem de uma suposta legitimidade de nações superiores em se apropriar de tudo o que lhes fosse possível, mesmo que não se tratasse de uma vitória entre exércitos que se combateram, mas tão-só decorrentes de ocupação, posse ou subjugação. Embora episódicas, houve várias restituições ainda no século passado e nos primeiros anos deste século. Nos últimos anos o processo acelerou-se e tomou uma dimensão global a partir de três factores: o debate alargado da necessidade de uma descolonização no interior da própria Europa, dos EUA e do Canadá; a suspensão do Museu da África Central, em Tervuren, enquanto museu etnográfico, e a construção de uma nova museografia descolonizadora; e o relatório de Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, Restituer le Patrimoine Africain, Negotiating the Future of Colonial Cultural Objects, realizado a convite de Emmanuel Macron [Presidente francês] e publicado em 2018.

O levantamento exaustivo das obras de origem africana que foram ilegitimamente trazidas para a Europa fez com que este relatório tivesse impacto e consequências imediatas. Numa estimativa contida, 500 mil artefactos estão em museus europeus. A estes números deverão juntar-se as colecções privadas, as centenas de páginas e de objectos de arquivos, colecções zoológicas, herbários, armas, cestaria, máscaras, e os restos mortais de africanos, trazidos para a Europa como soldados ou para servirem como figuras de entretenimento em circos e outros palcos.

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Economista, professor, escritor e músico, o senegalês Felwine Sarr é também um dos autores do relatório Restituer le Patrimoine Africain, Negotiating the Future of Colonial Cultural Objects Nuno Ferreira Santos

Obras em exílio

Em 2020, a Assembleia Geral da ONU adoptou a resolução Devolução ou restituição de bens culturais aos seus países de origem por consenso, e sem votação, pelos 193 países que a compõem. Desde então a restituição das obras em exílio tornou-se um tema central de um processo incontornável do fim da colonização, um contributo determinante para salvar o que resta do lado solar do humanismo e um contributo político para a paz e para a realização de uma justiça universal.

O processo não é fácil, porque implica questões de natureza ética, técnica, jurídica e política em tempos muito diversos. O professor Jos van Beurden tem um feito um trabalho diário de serviço público à escala universal, dando conta das restituições, negociações entre governos e da disponibilidade e vontade dos directores dos museus, arquivos e outras instituições que têm na sua posse património adquirido de forma ilegítima e ilegal.

A direcção da Fundação do Património Cultural Prussiano, um organismo federal que supervisiona 27 museus e organizações culturais em Berlim e arredores, concordou em devolver uma série de objectos aos Camarões e à Namíbia. O Museu Etnológico de Berlim transferiu para a Nigéria 512 objectos da sua colecção. Os museus de Lubeque querem devolver objectos da sua colecção etnográfica que contém mais de 26 mil peças, algumas adquiridas durante o período colonial.

As direcções das universidades de Oxford e de Cambridge acordaram em devolver à Nigéria 213 peças dos Bronzes do Benim, uma colecção composta por mais de mil artefactos criados pelos povos Edo, a maioria deles saqueados pelas tropas coloniais britânicas em 1897. A obra mais antiga data do século XIII. Os Museus Glasgow Life transferiram a propriedade de sete antiguidades para as autoridades indianas, incluindo um cerimonial indo-persa tulwar (espada), que se crê datar do século XIV, e um cordeiro de porta de pedra esculpida do século XI, retirado de um templo hindu, em Kanpur.

O Japão planeia devolver no início deste ano mais de 1200 volumes de livros reais coreanos antigos que levou da Península da Coreia durante o seu domínio colonial de 1910 a 1945. Seis artefactos culturais, conservados no Centro Tūhura de Ciência, do Museu Otago, na Nova Zelândia, serão devolvidos ao povo aborígene original mais de um século depois de terem sido levados.

Em Julho de 2018, o Supremo Tribunal de Nova Iorque ordenou ao procurador-geral de Manhattan que entregasse a custódia do baixo-relevo da Guarda à República do Irão. Paralelamente os EUA e o Canadá continuam a sua política de repatriamento de artefactos aos povos indígenas das primeiras nações, tendo os representantes destas uma participação determinante no processo.

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Bronzes do Benin em exposição no British Museum, em Londres. Estas peças têm sido alvo de debate sobre a sua restituição Toby Melville/Reuters

Mas há também recusas e contratempos. A França, que teve um papel determinante no início deste processo, vive um impasse, dada a dificuldade do Senado e do Parlamento em se entenderem na redacção de uma legislação geral sobre o tema, tendo as restituições até agora feitas decorrido de aprovações pontuais no Parlamento. Notícias recentes informam que para ultrapassar este impasse o Governo francês vai apresentar este ano três propostas de lei-quadro para regular operações de restituição bens patrimoniais. Foi o caso da devolução de 26 obras do tesouro de Abomey ao Benim, da espada conhecida como “El Hadj Omar Tall” ao Senegal, da coroa da rainha Ranavalona III de Madagáscar a Antananarivo e outras. Enquanto isto, uma grande maioria dos museus franceses e de coleccionadores é favorável à restituição.

A devolução de obras também já se iniciou no seio da Igreja Católica. Em Espanha, a partir de 2011, em colaboração com o Museu do Prado, foram restituídas obras a instituições religiosas de onde tinham sido retiradas num plano conhecido como “restituição doméstica”. Em Itália, seguindo o mesmo plano, a Galeria dos Uffizi devolveu a Santa Maria Novella a Madonna Rucellai, de Ducci di Buonisegna. O Papa Francisco anunciou que o Vaticano vai devolver à Grécia fragmentos de esculturas do Pártenon que estão nos Museus do Vaticano.

Restos mortais insepultos

No que diz respeito à restituição de restos mortais, os números precisos são difíceis de obter. Um estudo de 2003 indicou que só os museus ingleses possuem os restos mortais de mais de 60 mil pessoas em 132 instituições, incluindo talvez 18 mil provenientes do estrangeiro. Desde 2017 que o Governo australiano reclama a Londres os restos mortais de nativos, na sequência da qual o Museu de História Natural de Londres devolveu os restos mortais humanos de 37 povos indígenas à comunidade Narungga do Sul da Austrália, em Março de 2019. O Museu de Etnografia de Leipzig devolveu à Austrália, em 2022, os restos mortais de seis corpos pilhados de colecções etnográficas. Trata-se da terceira devolução de restos humanos de indígenas australianos.

Por último, uma das mais simbólicas restituições: a restituição pela Bélgica do dente de Patrice Lumumba, o primeiro-ministro da República Democrática do Congo assassinado e cujo corpo foi destruído com ácido, só tendo ficado um dente à guarda da Bélgica durante anos.

Na Europa, e na sequência destas devoluções, estabeleceu-se ainda um preceito fundamental sobre a restituição de restos mortais de pessoas negras ou indígenas aqui enterradas: os seus restos mortais são considerados insepultos, pelo que têm de regressar aos seus países de origem e não podem servir como objectos de exposição ou de estudos científicos.

Esta amostra do estado actual do processo global de restituição diz bem da diversidade de origens, das centenas de pessoas e instituições envolvidas e do facto evidente de serem os grandes impérios coloniais como a Alemanha, a França, a Bélgica e a Inglaterra os maiores proprietários destes objectos pilhados. É também destes países que chegam hoje as maiores resistências com argumentos que não podem deixar de ser considerados cínicos, paternalistas e neocolonialistas: porque foram os ocidentais que os encontraram; porque se não os tivessem trazido para a Europa teriam sido destruídos; e que fora da Europa e da América do Norte não há museus ou arquivos que os conservem. Estes argumentos demonstram um enorme desconhecimento da museologia africana contemporânea e insistem na produção de uma amnésia sobre a violência e o genocídio cultural perpetrado na apropriação de todos estes artefactos.

Há também, para surpresa de muitos, a pouca reclamação de países e particularmente dos africanos. Tal se justifica devido às guerras de libertação e civis no pós-independência, em que morreram muitos guardiães de memórias, à deslocação de centenas de milhares de pessoas da sua região original e, na actualidade, devido às relações de dependência que existem entre muitos Estados africanos e europeus. A Europa tem dificuldade em lidar com o seu passado esclavagista e colonialista que sustentou o seu desenvolvimento económico e progresso e reforçou os alicerces imperiais, tendo sido, ao mesmo tempo, responsável pelo empobrecimento das populações africanas, pela destruição das suas culturas, das línguas e dos mecanismos políticos de governo.

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Exibição de um dos seis artefactos do The Horniman Museum and Gardens, em Londres, que serão devolvidos à Nigéria Maja Smiejkowska/Reuters

Os arquivos digitais começam a constituir-se com o propósito de guardar na Europa cópias de documentos cujos originais serão devolvidos aos seus proprietários, ou como modo de partilha democrática, como é o caso do projecto do Arquivo Leaky e da sua base de 165 mil entradas; o Tropenmuseum, em Amesterdão, através de plataformas digitais e interactivas disponibiliza aos visitantes centenas de artigos, documentos e livros e o acompanhamento dos passos que o museu está a dar para aprender mais sobre a arte saqueada da colecção; o Museu Fowler, na UCLA, Los Angeles, expôs obras de arte e material de arquivo extraído de um subconjunto de objectos africanos do início do século XX que chegaram ao Fowler em 1965 a partir da colecção privada de Sir Henry Wellcome (1853-1936). Várias instituições têm publicado guias detalhados de processos de restituição que combinam as dimensões éticas com as técnicas e nos Países Baixos têm surgido propostas de revisão curricular, em que estas questões são abordadas.

Em Portugal, cuja história, economia e população estão indissociavelmente ligadas à escravatura e ao colonialismo, a situação oscila entre um alheamento generalizado da população e uma resistência passiva por parte de sectores de decisão. A confirmá-lo a Assembleia da República, na legislatura anterior, ter reprovado a proposta da deputada eleita pelo Livre, apoiada pelo Bloco de Esquerda e PAN para que fosse realizada a inventariação e identificação do património de origem colonial. Mostrava-se assim que, de uma forma transversal a todos os outros partidos, existe uma melancolia colonial e uma recusa de confrontar a História nos seus factos mais tenebrosos. O Governo, por sua vez, afirmava não ver razão para tratar da identificação, inventariação e possível restituição de obras, pois não tinha conhecimento de reclamações das ex-colónias. A situação não se alterou na actual legislatura. O Governo afirmou não ser este um assunto prioritário, embora considere possível iniciar uma identificação das peças de origem não europeia presentes nos museus e colecções nacionais.

O argumento da não reclamação por parte de governos dos países que foram colónias portuguesas é cínico, falso e ofensivo para esses países. Ainda que não houvesse nenhuma reclamação, a apropriação ilegal e ilegítima desses objectos é um acto de natureza criminal, existam ou não queixosos directos. Um Estado que pretende contribuir para todas as formas de descolonização e defensor de uma justiça universal tem como imperativo inventariar e investigar o património à luz de uma museografia descolonial. E cooperar com os governos que são os legítimos herdeiros deste património, independentemente de futuros actos de restituição.

No contexto deste alheamento e/ou resistência, há factos e decisões que importa destacar pela sua relevância e pela sua recusa em perpetuar a amnésia colonial, a saber: o Museu Nacional de História Natural e da Ciência, ao longo dos últimos anos, e de moto próprio, já identificou e inventariou 2,5 milhões de artefactos, incluindo espécimes vegetais e restos humanos; o Museu Nacional de Arqueologia, o Municipal Santos Rocha, a Universidade de Évora e o Instituto de História Contemporânea, associados no projecto Transmat, iniciaram um trabalho de inventariação, tendo já encontrado algumas peças com origem problemática; o ICOM Portugal realizou, em 2021, um inquérito sobre a presença de património proveniente de territórios não europeus nos museus portugueses (1).

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Máscara-elmo em madeira usada nos rituais de iniciação masculinos dos Maconde, comprada por Jorge e Margot Dias em 1958 CORTESIA: MUSEU NACIONAL DE ETNOLOGIA

O inquérito do ICOM foi enviado a 414 museus portugueses, tendo obtido apenas 45 respostas, sintoma de uma recusa de contribuir para a constituição de uma carta dos objectos apropriados por parte destas instituições e dos responsáveis de muitos museus.

No que diz respeito à posição pública sobre a inventariação e restituição de governos e instituições das ex-colónias assinale-se que o tema entrou na agenda de alguns governos, museus e investigadores. Em Angola, o Museu Regional do Dundo, que já beneficiou de trabalhos de restauro de peças do seu acervo pelo Museu Real de África Central/AfricaMuseum, da Bélgica, irá assinar, em breve, um memorando de entendimento com este museu, com vista à cooperação no domínio da inventariação e tratamento do património de origem angolana.

De Angola também vem a informação de ter sido criada uma comissão a trabalhar em vários países na identificação de peças do seu património e da identificação de algumas peças em colecções portuguesas, que gostariam de reaver. Em Moçambique, em 2021, um grupo de investigadores e artistas iniciou um debate com o propósito de criar uma agenda de trabalho com implicações internacionais. Publicações como a revista Concreta, n.º18, e o Boletim do ICOM, 2021, dão conta deste processo de restituição e reparação na identidade pós-conflito. Na sequência da performance de Zia Soares, Fanun Ruin (2022), que propôs uma reflexão sobre a presença de 35 crânios de timorenses que foram degolados e cujos crânios se encontram num armário do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, espera-se que estes crânios sejam identificados e colocados à disposição do governo de Timor para serem restituídos.

Na sequência da aceleração das restituições a que temos assistido, novas problemáticas e soluções vão surgindo e é visível um maior cuidado das instituições com a disponibilização da informação. Há, portanto, um processo de demanda e de justiça global em marcha, um movimento irreversível de “dar um novo mundo ao mundo”, na belíssima expressão de Alioune Diop.


1. Para acompanhar este debate em Portugal, consulte-se: António Pinto Ribeiro, “A restituição”, PÚBLICO, 28/09/2018; António Pinto Ribeiro e Margarida Calafate Ribeiro, “A restituição das obras: um passo decisivo no processo de descolonização”, Newsletter Memoirs, 22/12/2018; Luís Raposo, “Devolver património, sim, não, talvez… Mas devolver o quê e a quem?”, PÚBLICO, 29/01/2020; Fábio Monteiro, “Quem é dono do passado?”, Jornal de Negócios, 6/03/2020; Clara Everdosa, “Oxford e Cambridge decidem devolver a África 213 Bronzes do Benim”, PÚBLICO, 4/08/22; Christiana Martins, “Identificadas peças com origens polémicas em museus públicos”, Expresso, 11/12/2022

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