Brasil é o país com mais homicídios de pessoas trans pelo 14.º ano consecutivo

Expectativa de vida de uma pessoa trans no país é de 35 anos. Segundo o relatório da Antra, 131 pessoas foram mortas em 2022, contudo, os valores indicam uma diminuição desde 2020.

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Brasil é o país com mais homicídios de pessoas trans pelo 14.º ano consecutivo Unsplash

Eram 4h30 do dia 30 de Julho de 2022 quando Isabella Yanka, de 20 anos, foi morta com facadas em Ceilândia, no Distrito Federal. Segundo a investigação, a jovem, que tinha saído de uma festa minutos antes, estava embriagada e indefesa.

Passaram quatro dias até que a polícia civil prendesse um homem de 27 anos que logo se declarou culpado. A identidade do assassino foi protegida pelos investigadores, mas o crime que cometeu entrou para as estatísticas.

A morte da jovem é uma das dezenas reveladas pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) no relatório anual de 2022.

Os dados salientam que o Brasil é, pelo 14.º ano consecutivo, o país com maior número total de homicídios de pessoas transgénero. Segundo o documento, 131 foram mortas no país no ano passado, sendo que a maioria das vítimas tinha entre 18 e 29 anos. A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil são 35 anos.

Ainda assim, a taxa é 6% menor comparada aos valores registados em 2021, ano em que existiram 140 homicídios.

Por estado, Pernambuco, com 13, foi o que registou mais assassinatos. E São Paulo, que é historicamente o que reúne o maior número de vítimas, ficou em segundo lugar, com 11, tal como o Ceará. Em relação a Pernambuco e Ceará, o Nordeste é a região brasileira com mais homicídios. No último ano, 40,5% dos casos foram contabilizados nesta região.

Os dados foram divulgados na tarde de quinta-feira, quando o documento foi entregue ao ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, que esta semana recebeu várias personalidades transgénero. O Dia da Visibilidade Trans no Brasil é comemorado no domingo, dia 29 de Janeiro.

O relatório ressalva ainda que a maioria dos crimes aconteceu durante a noite, tendo como alvo pessoas que se prostituem para sobreviver.

Uma realidade "preocupante"

Para traçar o mapa da violência, a análise da Antra levou em conta fontes primárias de informação, como entidades responsáveis pela segurança pública, poder judicial e imprensa. Também foram usadas fontes secundárias, como redes sociais, testemunhos e instituições de direitos humanos.

A seguir ao Brasil, o México e os Estados Unidos são os restantes países responsáveis pela maior quantidade de assassinatos de trans. No México, 56 pessoas foram mortas em 2022 e nos Estados Unidos 51.

Segundo o projecto Trans Murder Monitoring (Monitorização de Assassinatos de Trans, em português), do total de 4.639 homicídios catalogados entre Janeiro de 2008 e Setembro de 2022, 1.741 ocorreram no Brasil. Isto significa que, sozinho, o país acumulou 37,5% das mortes mundiais.

Neste período de tempo, americanos e mexicanos têm 649 (14%) e 375 (8%). Por região, a América Latina e as Caraíbas concentram 68% dos assassinados registados desde 2008.

A análise mostra ainda que, em 2022, 95% dos assassinados em todo o mundo eram mulheres trans. Além disso, pessoas negras ou pardas (com ascendência negra, branca e indígena) representavam 65% das vítimas.

Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e responsável pelo relatório, diz que os números chamam a atenção por continuarem extremamente altos. "Houve uma pequena variação, claro, mas nós não acreditamos que isso seja positivo. Não há um programa de Governo para atacar esse problema, precisamos de acções conjuntas e estruturadas para ver uma diminuição contínua no número de mortos", declarou.

Segundo Benevides, durante o Governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), acções para a população trans foram deixadas de lado.

No início deste mês, o Governo de Lula (PT) criou uma secretaria especial LGBTQIA+. A titular da pasta é Symmy Larrat, ex-presidente da ABLGT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais).

Junto ao Ministério da Justiça, a secretaria LGBT+ articula projectos para protecção da população trans, inclusive com a participação da Antra e das deputadas Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), as primeiras parlamentares transgénero da história do Congresso Nacional.

"A realidade de pessoas trans no Brasil é preocupante e não há como não se estarrecer com esses dados que hoje são medidos apenas pelos movimentos sociais. Nos últimos anos, houve conquistas importantes, por via judicial, que garantem maior segurança e direitos a esta população, mas o Governo anterior não promoveu as ferramentas necessárias para sua execução", afirmou.

"O nosso maior desafio emergencial é promover as pontes na política pública para que as normas legais, que assegurem o acolhimento e justiça em caso de transfobia, sejam criadas e implementadas, ampliando a produção de dados e, sobretudo, a protecção das pessoas", completou.

O modelo de inclusão da população utilizado pela cidade de São Paulo é um que agrada a membros da articulação trans em Brasília. A cidade possui um programa, ligado à secretaria de assistência social, chamado transcidadania, que promove a reintegração social para mulheres e homens trans em situação de vulnerabilidade. O programa oferece auxílio financeiro e suporte para que essas pessoas voltem à escola.

A psicóloga Fe Maidel, mulher trans e assessora de coordenação de políticas para a população LGBTI+ de São Paulo, defende que a população trans merece um tratamento mais humanizado. "Somos uma minoria em vulnerabilidade com necessidades extremas e diversas. Há uma tendência para varrer as nossas mortes para debaixo do tapete. De muitas formas, tentam nos invisibilizar. Não há nem dados nacionais confiáveis sobre essa população", acrescenta.

Maidel também culpa o anterior Governo por elevar o tom contra minorias e aumentando o ódio. "As pessoas têm medo do desconhecido. O discurso do Governo passado era de que éramos pecadores. É claro que não é isso. Somos pessoas como quaisquer outras. Se tivermos acesso à escola, condições mínimas de vida e dignidade, teremos um futuro melhor", afirma a assessora.


Exclusivo PÚBLICO/Folha de S. Paulo

Nota do editor: o PÚBLICO respeitou a composição do texto original, com excepção de algumas palavras ou expressões não usadas em português de Portugal.

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