Eu minto, tu mentes, ele mente…

A mentira existe, dizem-nos os historiadores, desde que as pessoas começaram a viver juntas. Sociedade e mentira cresceram juntas, sempre interagindo, e assim permanecem até aos nossos dias.

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“Nenhum mentiroso tem uma memória suficientemente boa para se tornar um mentiroso de êxito” (Abraham Lincoln) DR/Joshua Hoehne via Unsplash

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Quem nunca mentiu que atire a primeira pedra. Esta variação da célebre argumentação “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, com que Jesus Cristo terá salvado Maria Madalena do apedrejamento, é o ponto prévio em jeito de salvaguarda – a prática da mentira é generalizada e a ela não renego — de uma elaboração sobre a mentira.

A mentira existe, dizem-nos os historiadores, desde que as pessoas começaram a viver juntas. Sociedade e mentira cresceram juntas, sempre interagindo, e assim permanecem até aos nossos dias.

Era essa a opinião de Friedrich Nietzsche, crente de que a mentira é fundamental para a convivência social: “A verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem do rebanho chama de verdade aquilo que o conserva no rebanho e chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do rebanho. Portanto, em primeiro lugar, a verdade é a verdade do rebanho.”

O filósofo acreditava que o homem gosta de ser enganado e que não foge da mentira, mas das suas consequências, pelo que, quando a verdade suscita desfechos negativos para si, o homem também foge dela...

“O engano é a Cinderela da natureza humana; essencial para a nossa humanidade, mas repudiado a todo o momento pelos seus perpetradores. O engano é normal, natural e difuso. Não pode, ao contrário do que diz a opinião popular, ser reduzido a doença mental ou fracasso moral. A sociedade humana é uma rede de mentiras e enganos que desmoronaria sob o peso de uma honestidade excessiva. Dos contos de fadas que os nossos pais nos contavam à propaganda que nossos governos nos mostram, os seres humanos passam a vida cercados de fingimento”, afirma David Livingstone Smith, diretor do Instituto de Ciência Cognitiva e Psicologia Evolutiva da Universidade de New England, no livro Por Que Mentimos — Os fundamentos biológicos e psicológicos da mentira.

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Todos mentimos. Porquê? A lista de razões para mentir é infinita: mentimos por medo, para alcançar determinada coisa ou vantagem, para proteger ou não magoar os filhos, para preservar o casamento, para prejudicar alguém, para ser aceite em determinado contexto, para evitar ser punido, mentimos a nós próprios para nos convencermos de que as coisas não são como são, mas como queremos que sejam, e por aí fora. E não esqueçamos os mentirosos compulsivos, mitomaníacos, que padecem de doença motivada por transtorno ou perturbação psicológica.

Havendo razões, justifica-se mentir? “Nenhum homem bom deve mentir (…) o que mais ardentemente a alma deseja senão a verdade?”, escreveu Santo Agostinho em Sobre a mentira, argumentando que a mentira é sempre má, seja qual for a situação ou motivação.

Immanuel Kant, mais de 1300 anos depois, concordava com Agostinho: “Cada homem tem não somente o direito, mas até mesmo o estrito dever de enunciar a verdade nas proposições que não pode evitar, mesmo que prejudique a ele ou a outros. O indivíduo não é absolutamente livre para escolher, porquanto a veracidade é um dever incondicionado.”

George Orwell, escritor e jornalista britânico, discordava: “Contar mentiras deliberadamente e acreditar genuinamente nelas, esquecer qualquer fato que se tenha tornado inconveniente e, depois, quando ele se torna necessário outra vez, resgatá-lo do esquecimento apenas pelo período em que é necessário, negar a existência da realidade objetiva e, enquanto isso, levar em consideração a realidade negada — tudo isso é indispensavelmente necessário.”

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Há alguns grupos sociais muito associados ao acto sistemático de mentir, seja por boas ou más razões. Diz-se, por exemplo, que os caçadores e pescadores mentem com frequência sobre as proezas na arte do tiro e de puxar a linha.

Também os médicos são acusados de mentir ou de omitir (omissão, a prima menos má da mentira) com frequência para atenuar o sofrimento dos pacientes. E os advogados? Quem nunca ouviu insinuações sobre as suas mentiras para salvar os clientes da punição. E, claro, nesta lista não podiam faltar os jornalistas, esses seres conspiratórios que inventam notícias para vender jornais e subir as audiências. Por fim, quem nunca participou numa conversa em que alguém afirmou, sem reservas, que os políticos estão sempre a mentir, tudo fazendo em prol de poder e benefícios?

Como em tudo, a generalização é um erro.

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“Nenhum mentiroso tem uma memória suficientemente boa para se tornar um mentiroso de êxito.” A frase é atribuída a Abraham Lincoln, Presidente dos EUA entre 1861 e 1865, unanimemente considerado homem íntegro e um dos mais importantes presidentes da história daquele país, que foi um acérrimo defensor da igualdade e liberdade para todos e o responsável maior pela abolição da escravatura (1963).

Sobre a sua obra, vasta e relevante, muito haveria para elogiar, mas a supramencionada referência parece-nos suficiente para atestar da sua integridade. Relembro outro pensamento da sua autoria: “Quase todos os homens são capazes de superar a adversidade, mas, se se quiser pôr à prova o caráter de um homem, dê-se-lhe poder.”

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Depois de se ser desmascarado numa mentira, é difícil voltar a olhar nos olhos das pessoas que sabem que mentimos — não é difícil para todas, bem sei. Há 11 anos, a professora do meu filho (tinha ele 6 anos) disse-lhe que o Pai Natal não existia. Quando chegou a casa da avó, a criança partilhou, de lábio a tremer, a revelação.

A senhora minha mãe explicou-lhe de forma cuidadosa que era o pai que se mascarava na véspera de Natal com a fatiota vermelha, a barba e as almofadas presas à cintura. “Só acredito quando o pai me disser”, afirmou, esperançoso de que tudo não passasse de um pesadelo. Quando cheguei, fui confrontado com a pergunta mais difícil da minha vida:

— Pai, o Pai Natal és tu?

As lágrimas brotaram ainda antes de lhe responder:

— Sim, filho, é o pai que se veste de Pai Natal… — respondi, hesitante, abraçando-o rapidamente para fugir ao escrutínio do seu olhar.

Mentira piedosa — entretanto, proferi outras mentiras menos piedosas, não sou um santo; quem o for que me apedreje —, mas, ainda assim, difícil de gerir. Na altura, receei ter perdido a confiança do petiz.

Perda de confiança, desconfiança e desrespeito são algumas das possíveis consequências da mentira.

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“O caráter é como uma árvore e a reputação é como a sua sombra. A sombra é o que nós pensamos dela; a árvore é a coisa real”, pronunciou Abraham Lincoln.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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