Brasil: que golpismo é este?

A invasão do Capitólio começou com o objetivo específico de impedir a certificação dos resultados eleitorais, enquanto a violência em Brasília parece ter tido uma motivação mais difusa e tortuosa.

No dia 8 de Janeiro, uma semana depois da posse de Lula da Silva, centenas de apoiantes de Jair Bolsonaro invadiram e vandalizaram as sedes dos poderes legislativo, executivo e judicial. O Brasil testemunhou aquilo que alguns comentadores já apelidaram de “Capitólio caipira”.

É fácil olhar para os acontecimentos de Brasília como uma versão brasileira da invasão do Capitólio em Janeiro de 2021. Bolsonaro, que nunca escondeu admiração por Donald Trump e seu populismo, radicalizou a sua base de apoio através de uma retórica antissistema, enquanto fazia concessões a interesses instalados para se manter no poder. Tal como nos EUA, o presidente alimentou a desconfiança nas instituições políticas e na lisura do processo eleitoral, acabando por se recusar a reconhecer um resultado desfavorável. À semelhança do que ocorreu em Washington, o ataque emerge de um ecossistema de notícias falsas e teorias da conspiração, reproduzidas em redes sociais e propagadas por alguns representantes partidários e políticos eleitos. Ambos os ataques possuem um âmago antidemocrático, ainda que mascarados de uma suposta defesa da liberdade e da vontade popular.

Porém, algumas caraterísticas importantes distinguem o golpismo brasileiro. Enquanto a invasão do Capitólio começou com o objetivo específico de impedir a certificação dos resultados eleitorais, a violência em Brasília parece ter tido uma motivação simultaneamente mais difusa e tortuosa. Por um lado, a violência dirigiu-se ao sistema político como um todo, incluindo o presidente recém-empossado, mas não poupando o Congresso recentemente eleito e os juízes do Supremo Tribunal Federal. Por outro lado, um dos objetivos dos invasores parece ter sido o de criar uma situação de caos que propiciasse uma intervenção militar para a reposição da ordem. A teoria de que as Forças Armadas aguardariam um sinal da população para sair dos quartéis e reinstalar Bolsonaro no poder tem sido amplamente divulgada entre os apoiantes do ex-presidente.

Isto leva-nos a duas outras diferenças. A primeira é que esta revolta não se confinou a redes sociais ou fóruns radicalizados, não foi preparada em surdina e não resultou simplesmente do calor do momento. Teve uma gestação longa, bem visível nas praças e estradas onde os golpistas se congregam há semanas, tentando impedir a transição de poder. A tomada dos edifícios em Brasília era anunciada há muito, não tendo havido qualquer esforço de esconder intenções ou planos.

A segunda diferença prende-se com a forma como estas movimentações golpistas foram recebidas pelas entidades públicas. Acampamentos às portas dos quartéis, bloqueios de estradas, atos de violência e intimidação e até planos de atentados terroristas foram recebidos com palavras de relativização e até solidariedade por parte de líderes políticos aliados a Bolsonaro. Ao mesmo tempo, as forças policiais reagiram com passividade e os militares adotaram uma postura ambígua.

Nos EUA, as cúpulas militares demarcaram-se da aventura golpista de Trump. No Brasil, a promiscuidade entre as Forças Armadas e o bolsonarismo alimenta uma incerteza que terá sido uma das condições favoráveis ao ataque. Ainda que seja pouco provável que os militares brasileiros embarquem num golpe, os posicionamentos de alguns generais dificultam a aceitação do governo de Lula e constituem um entrave à pacificação do país. O mesmo pode ser dito das polícias, acusadas de omissão e até conivência com o golpismo. Um exemplo é a Polícia Rodoviária Federal, que nos últimos anos se tornou um dos agentes principais do bolsonarismo. Na segunda volta das eleições, a PRF tentou dificultar a votação em regiões favoráveis a Lula. Depois de o resultado ser anunciado, demorou na desmobilização de bloqueios de estradas que defendiam o golpe.

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Apoiante de Bolsonaro no ataque ao Palácio do Planalto UESLEI MARCELINO/Reuters

Nos próximos meses, muitas questões serão colocadas acerca da rede de atuações, omissões, cumplicidades e incúria que permitiram as cenas inéditas de depredação no centro do poder brasileiro. É possível falar de um verdadeiro “apagão” da segurança, ao qual não será estranho o fato de Anderson Torres, o Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, entretanto exonerado, ser ex-ministro da Justiça de Bolsonaro. O governador do DF, Ibaneis Rocha, foi um apoiante do ex-presidente.

Mas a responsabilidade não fica por aqui. Vários empresários financiaram e forneceram apoio logístico às manifestações. O atual ministro da Defesa de Lula, José Múcio, relativizava há poucos dias a gravidade das mesmas, revelando que nelas participaram alguns dos seus amigos e familiares. Em última instância, a responsabilidade chega ao círculo mais próximo de Bolsonaro e ao próprio ex-presidente, que antes da tomada de posse de Lula embarcou, convenientemente, num avião rumo os Estados Unidos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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