A aposta antidemocrática: o Brasil numa tarde de domingo

As bases do atentado aos três poderes foram construídas, arquitetadas e solidificadas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

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Gabinete do Palácio do Planalto atacado neste domingo por bolsonaristas Reuters/UESLEI MARCELINO

No último domingo, dia 8 de janeiro de 2023, apoiantes do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram a sede dos poderes executivo, legislativo e judiciário em Brasília, o maior símbolo da democracia e República Brasileira. Diante do laxismo das forças de segurança e omissão das autoridades locais, o cenário de destruição tornou-se inédito, com depredação de património público, roubo de armas, agressões e violência. O caos, a barbárie e os atentados à democracia brasileira aconteceram numa tarde​​, sob os nossos olhos, filmado, fotografado e registado através das redes sociais e meios de comunicação.

De forma simbólica, uma cópia original da Constituição de 1988, representação do fim da ditadura brasileira e do comprometimento com o Estado de Direito Democrático, foi roubada por bolsonaristas. A invasão dos três poderes representa muitas coisas: a radicalização do bolsonarismo, a concretização de discursos autoritários, a partidarização da polícia brasileira e a tão falada fragmentação social. Mas representa também, literalmente, um assalto à democracia e o perigo de se tolerar atos e atentados contra a própria democracia e as suas instituições.

O ex-presidente Jair Bolsonaro perdeu as eleições e foi abandonado institucionalmente. Logo após as eleições, os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados reconheceram a vitória do Presidente Lula da Silva e os ajustes começaram a se refazer diante de um novo governo. Jair Bolsonaro, por seu turno, numa clara demonstração de falta de virtude política, nunca reconheceu que perdeu as eleições e, tão pouco, aceitou dignamente a alternância do poder, restando-lhe poucos aliados e uma base fanática e radicalizada.

Giuliano da Empoli chamou-nos atenção sobre o "carnaval populista" vivenciado por algumas democracias, inclusive, a brasileira. Destacou o surgimento de discursos, líderes e engenheiros do caos, que se utilizam de teorias da conspiração, fake news e algoritmos para disseminar ódio, medo e influenciar o resultado das eleições.

Ontem, no caso brasileiro, podemos perceber uma sucessão de alternativas golpistas: o bolsonarismo, ao não atingir o objetivo de influenciar as eleições através do ódio, medo, fake news e descredibilização do sistema eleitoral, apostou na intervenção militar; uma vez reconhecido o resultado eleitoral, ao não atingir o objetivo de reverter a derrota de Bolsonaro utilizando-se de vigílias à frente dos quartéis generais, apostou na tentativa de desestabilização e rutura do governo do Presidente Lula da Silva. Qual será a próxima aposta antidemocrática?

As bases do atentado aos três poderes foram construídas, arquitetadas e solidificadas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Para os bolsonaristas, os defeitos de Bolsonaro são qualidades, a sua falta de habilidade e inexperiência política provava que ele não pertencia às "elites corrompidas" e a sua incompetência era vista como autenticidade. Um pensamento que proporciona o carnaval populista descrito por Giuliano da Empoli.

Se nos anos 1960 as manifestações visavam, sobretudo, atingir um objetivo comum e quebrar tabus conservadores, hoje os nacional-populistas e os seus apoiantes adotam um sentido oposto: não há perspetiva de objetivos, é a tentativa quebrar com “códigos da esquerda” (à brasileira, o esquerdismo) e de eclosão do caos. Para os fanáticos bolsonaristas, o jogo político não consiste mais em unir as pessoas a partir de um denominador comum, mas inflamar paixões (termo atualmente tão pouco utilizado em política) e emoções negativas tanto quanto for possível, para que se unam ao extremo.

Aliás, os direitos de manifestação e de liberdade de expressão são caros para as nossas democracias e jamais devem ser confundidos ou mobilizados para justificar opiniões e atos que são, verdadeiramente, atentados à democracia e às suas instituições. Nesse sentido, apresenta-se uma pergunta importante, há muito tempo feita pelo politólogo Robert Dahl: como limitar o conflito numa democracia, de maneira a não destruir o próprio regime?

Atos antidemocráticos e tentativas de golpes não podem ser admitidos, tolerados ou incitados numa democracia, por um lado porque é contra ao seu princípio, e, por outro lado, porque afeta a qualidade e sustentação democrática. É importante identificar e, tanto quanto possível, estabelecer as condições que reduzam o perigo de violência, coerção em grande escala e destruição da democracia pelos seus cidadãos. Se a virtude torna a democracia possível, o apelo sedutor dos nossos tempos ao autoritarismo torna a democracia necessária.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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