Três razões (e muitas mais) para a revolta dos professores

É muito provável que, às portas das escolas e nas ruas, estejam a manifestar-se milhares de professores humilhados e ressentidos, por causa de um sistema de avaliação baseado numa meritocracia tóxica.

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LUSA/MIGUEL A. LOPES

1) A tirania do mérito

No seu último livro A Tirania do Mérito, Michael Sandel analisa criticamente o mérito na sociedade. E afirma que é errado acharmos que somos ricos, que temos um salário muito elevado, um património valioso ou que atingimos o topo da carreira, apenas pelo nosso esforço, talento ou capacidades. Pensar assim, como refere Sandel, torna-nos pessoas menos gratas, menos humildes e menos preocupadas com o bem comum. Por isso, entre os vencedores os que enriqueceram, que ganham muito mais, que têm um património faustoso ou que atingiram o topo da carreira – a ilusão do mérito gera arrogância. Entre os vencidos – os que foram deixados para trás – a tirania do mérito gera humilhação e ressentimento.

A avaliação do mérito dos docentes nas escolas é bem exemplificativa desta ilusão e tirania do mérito. Em 2022, por exemplo, cerca de seis mil professores não progrediram no 4.º e 6.º escalão. Não porque, na maioria dos casos, não tivessem boa ou excelente classificação ou não se empenhassem e realizassem com profissionalismo e até abnegação o seu trabalho. Mas por causa de um sistema de quotas que “premeia”, quase aleatoriamente, apenas uma parte dos docentes e exclui milhares.

2) Uma profissão em degenerescência

A profissão docente tem perdido valor e reconhecimento público, desde o início deste século, em resultado de algumas (in)decisões políticas insensatas. Nas duas últimas décadas, a carreira docente foi congelada quase dez anos e tem crescido o número de docentes a trabalhar em condições muito precárias.

Dos 120 mil docentes que existem em Portugal, cerca de 26 mil são contratados, têm uma média de 42 anos de idade, mais de metade com dez ou mais anos de serviço, auferem salários que não ultrapassarão os 1150 euros mas que podem até ser inferiores ao salário mínimo nacional. Isto porque, pasme-se, muitos destes professores são contratados à hora ou ao mês (com horários incompletos e temporários) e trabalham longe de casa: ou gastam boa parte do salário em transportes ou em alojamento.

A grande maioria dos que estão nos quadros do ME vive num permanente desassossego – está envelhecida (45% tem mais de 50 anos), é mal paga porque foi travada na carreira através de congelamentos, do sistema de quotas ou de avaliação enviesada, enfrenta indisciplina nas escolas e é obrigada a realizar tarefas administrativas/burocráticas que lhes roubam tempo para pensar no trabalho pedagógico, para investir no conhecimento, na cultura e na valorização profissional e académica. É por estes e outros motivos que a profissão docente é desgastante e deixou de ser atractiva.

3 – Respeito, liberdade e independência intelectual

A falta de professores é, neste momento, o problema mais grave do sistema educativo em Portugal. Calcula-se que, no final do 1.º período lectivo, cerca de 80 mil alunos possam estar sem professor a uma ou mais disciplinas. Esta escassez de docentes deve-se, essencialmente, às razões explicadas acima e à falta de visão ou vontade política dos sucessivos governos para resolver o problema. Senão vejamos. Por razões demográficas e socio-económicas, em Portugal há muitos mais professores disponíveis no litoral Norte e Centro do que no Sul e no interior. Por isso, a falta de docentes, neste momento, nota-se particularmente em Lisboa e no Algarve. Ora, se faltam professores nestas zonas do país, é porque estes não estão dispostos a abandonar as suas famílias, rumar a Lisboa e ao Algarve e pagar para trabalhar nessas regiões, onde o arrendamento de uma casa/quarto pode ser superior ao salário de muitos professores com horários temporários e incompletos.

O actual Ministro da Educação sabe disto. E sabe que só resolverá este problema com a valorização e dignificação da profissão docente e outras medidas, por exemplo, o pagamento de despesas de deslocação e de alojamento, a exemplo do que se faz noutras profissões, como os médicos, juízes e deputados, entre outros. Mas João Costa preferiu ignorar o óbvio e ir por um caminho sinuoso: propôs alterações no regime de contratação/colocação que pode obrigar os docentes (incluindo os docentes de carreira) a deslocarem-se compulsivamente dezenas ou centenas de quilómetros das suas residências, e permite a contratação por Conselhos Locais de Directores/Municípios/CIM´s, segundo um perfil feito à medida. À precarização profissional (que se agravou com a actual crise económica) juntar-se-á a precarização ética e deontológica dos docentes, pois, com o novo regime de contratação/colocação os professores perderão autonomia e independência intelectual porque ficarão agrilhoados ao poder discricionário, muitas vezes pouco escrutinado, de muitos burocratas locais, provavelmente, nomeados por critérios partidários.

O filósofo Bertrand Russel defendia que os professores “são os guardiões da civilização”. Porque são os responsáveis por reproduzir consciente e deliberadamente os valores, os conhecimentos e práticas sociais estruturantes de uma sociedade civilizada: uma sociedade orientada pelo conhecimento, pela ciência, pelo respeito dos direitos humanos, dos valores democráticos, da liberdade, da justiça, da igualdade e fraternidade entre os seres humanos. Para tal, exige-se que seja assegurada a autonomia, a liberdade e independência intelectual dos docentes. Se Russel tiver razão, com a proposta do Governo a civilização poderá estar em perigo.

Conclusão:

É muito provável que, às portas das escolas e nas ruas, estejam a manifestar-se milhares de professores humilhados e ressentidos, por causa de um sistema de avaliação baseado numa meritocracia tóxica, estejam milhares de professores que ganham pouco mais que o salário mínimo nacional, professores que estão há anos congelados nas suas carreiras e embrenhados na burocracia nas escolas e milhares de professores que lutam e lutaram desde sempre pela liberdade de pensamento e pela autonomia intelectual e académica. Só não vê quem não quer. O Ministro da Educação não vê ou não quer ver.

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