Os avós nasceram para treinadores de bancada

Os avós falam das suas teorias educativas, como se nós já não as conhecêssemos, mas, mãe, nós fomos alvo delas durante mais de 25 anos.

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"Os avós, como os comentadores desportivos, nasceram para treinadores de bancada" @designer.sandraf

Querida Mãe,

Como não a quero desiludir, aqui vai a resposta à birra que fez a favor do direito dos avós a interferirem na parentalidade. A mãe usava o argumento de que os avós eram mais “habilitados” do que os pseudo-especialistas e influencers a que os pais recorrem, e outros argumentos que tais que aqui venho rebater, ponto por ponto.

1. Também faço birras aos pseudo-especialistas, mas não é essa a questão. O que interessa para a nossa discussão é que há uma grande diferença entre os conselhos dos especialistas, ou supostos especialistas, e/ou até das influencers e os conselhos dos nossos pais, e sabe qual é? Os primeiros fomos nós que os pedimos e procurámos, e os segundos, não. E os conselhos não solicitados raramente encaixam tão bem.

2. Há um outro detalhe importante… Os avós falam das suas teorias educativas, como se nós já não as conhecêssemos, mas, mãe, nós fomos alvo delas durante mais de 25 anos! Somos peritos — na ótica do utilizador! Por isso, das duas, uma, ou concordamos com o que fizeram connosco e aplicamos, ou não gostámos (o que não é necessariamente culpa dos pais) e queremos fazer as coisas de maneira diferente com os nossos filhos.

E, nesse caso, a insistência dos avós até nos pode melindrar, porque sugere que devemos repetir com os nossos filhos o que ainda nos magoa, reforçando a ideia de que em lugar de “arrependidos”, se pudessem, até voltariam a fazer connosco tudo igual.

3. Sim, há casos de filhos que entraram numa competição parental e que estão a fazer disto um doutoramento que lhes permita puxar dos galões, mas, felizmente, não são a maioria.

4. Mais uma acha para a fogueira: está mais do que provado que todos procuramos as opiniões que nos dão mais jeito, aquelas que fazem sentido no ponto em que estamos, o que nos leva a procurar a experiência dos que estão a passar pelo mesmo do que nós. E os avós não estão. Já estiveram, mas em circunstâncias diferentes, num tempo diferente, o que podem tornar as suas opiniões menos convincentes.

Vá mãe, vou ter coragem, de o dizer, datadas! Calma, têm certamente muita coisa a ensinar-nos, mas esquecem-se de que, além do mais, estamos muito mais cansados do que vocês, com menos tempo e espaço mental, o que torna mais difícil lidar com as vossas bocas.

Resumindo: como na parentalidade, não há um certo e um errado — dentro dos limites do bom senso, obviamente — deixem-nos, s.f.f, só fazer o que conseguimos, e ir apaziguando a nossa culpa no livro ou podcast X ou Y. Até porque não me vai dizer que os livros de parentalidade são um problema da nossa geração, relembro que o Dr. Spock vendeu mais de 50 milhões de cópias!

Beijinhos


Querida Ana, touché.

Com esta carta garantiste umas semanas de sossego, com uma mãe caladinha e bem-comportada. Mais do que isso não garanto, mas podes sempre voltar a pegar nas canetas de feltro e pintar uma outra birra igualmente convincente.

Mas há um erro de perceção que não posso deixar de realçar: muitas vezes, os avós não querem repetir os métodos que usaram com os próprios filhos, mas exatamente o contrário.

Em 99,9% dos casos os avós transbordam de orgulho pelos pais que vocês são, e espantam-se como podem ser tão bons, apesar das suas falhas e erros. És uma mãe muito melhor do que a que fui, e digo o mesmo das minhas noras. Mas o que muitas vezes vos querem dizer, talvez não no momento certo, nem da maneira mais inteligente, é que também testámos a teoria A ou a moda B, variantes das que vocês testam agora, e que percebemos — à vossa custa, bem entendido! — que, não só não resultam, como consomem horas preciosas do tempo dos pais com os filhos.

Ups, ia lançada, e tinha escrito mais uns vinte parágrafos com exemplos, mas já os apaguei, não te preocupes. Tens toda a razão, cada um deve fazer o seu caminho. Fico então à espera que solicites a minha opinião sobre qualquer coisa, mas não demores muito, please, porque já sabes que os avós, como os comentadores desportivos, nasceram para treinadores de bancada.

Beijinhos, querida filha.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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