Glaciares: metade irá acabar até 2100, mas a outra metade ainda pode ser salva, diz estudo

Novo modelo avaliou impacto das alterações climáticas nos glaciares até 2100. Com os compromissos climáticos actuais, gelos do Centro da Europa, do Oeste dos EUA e da Nova Zelândia irão desaparecer.

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Um glaciar na Patagónia chilena que está a derreter com o aquecimento global ALBERTO VALDES/EPA

As imagens que nos chegaram dos Alpes em Julho de 2022 mostravam o derretimento acelerado dos seus glaciares, num dos verões europeus mais quentes de que há memória. Esse fenómeno reflecte uma tendência associada às alterações climáticas. Com cada décima de grau a mais que provocarmos na temperatura média da Terra, o impacto no derretimento dos glaciares será progressivamente maior, de acordo com um novo estudo na Science que traz o mais avançado prognóstico desta realidade até 2100.

As conclusões não são sorridentes. Mesmo que consigamos estabilizar o aumento de temperatura média da Terra em 1,5 graus Celsius, metade dos glaciares da Terra – os mais pequenos – irá desaparecer até ao fim deste século. Embora o impacto do derretimento destas massas de gelo no aumento do nível médio do mar seja pequeno, o fim daqueles glaciares pode trazer muitas outras consequências socioeconómicas.

“Os glaciares têm uma variedade de papéis em todo o mundo”, explica ao PÚBLICO David Rounce, engenheiro civil especializado em glaciologia da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, e primeiro autor do artigo. “Por exemplo, podem ser importantes para o turismo ou significativos para a cultura e a espiritualidade [dos povos]. Em alguns casos, estes glaciares poderão também providenciar uma protecção importante contra a seca.”

Mas este será o melhor dos cenários avaliados no artigo. Se a temperatura aumentar mais do que 1,5 graus, o desaparecimento dos glaciares terá um impacto muito maior.

A equipa fez projecções para o comportamento dos 215.547 glaciares terrestres consoante o aumento da temperatura média da Terra em 1,5, dois, três e quatro graus. De fora desta avaliação, ficaram apenas as grandes massas de gelo da Gronelândia e da Antárctida.

O cálculo das projecções teve três inovações importantes. Por um lado, os cientistas basearam-se na informação publicada em 2021, num estudo da Nature que usou imagens de satélite para analisar a evolução dos mais de 200.000 glaciares durante as duas primeiras décadas deste século.

“Ao calibrar o nosso modelo com esta informação, temos uma imagem muito mais completa e detalhada das alterações actuais da massa dos glaciares, comparando com modelos prévios que usavam informação regional e medidas feitas nos locais de um número limitado de glaciares”, explica David Rounce.

Por outro lado, o novo modelo integrou pela primeira vez fenómenos que ocorrem nos glaciares e que têm um impacto na sua evolução, como a perda de massa na dianteira dos glaciares costeiros, que entram em contacto com o mar, e a existência de detritos – que pode escurecer os glaciares, se forem poucos detritos, aquecendo-os mais, mas, se for uma camada significativa, permite isolar o gelo que está por baixo.

Em terceiro lugar, o estudo usou um modelo de comportamento da dinâmica dos glaciares “que é uma abordagem que se baseia mais na física (...) e, por isso, providenciou uma projecção mais realista de como o glaciar vai evoluir em resposta às alterações climáticas”, refere o investigador.

Resultados reveladores

A equipa estimou que entre 26% e 41% da massa dos glaciares vai desaparecer até 2100, tendo em conta a baliza de temperaturas definida. Estas percentagens de massa correspondem a um aumento do nível médio do mar entre nove e 15,4 centímetros, valores superiores às projecções feitas por modelos passados.

Apesar de os gelos acumulados na Gronelândia e na Antárctida poderem contribuir muito mais para a subida do nível médio do mar, não se pode desprezar o impacto que os outros glaciares têm neste fenómeno. O estudo de 2021 publicado na Nature mostrava que, nos primeiros 20 anos deste século, o derretimento dos glaciares produziu um aumento do nível médio do mar de 0,74 milímetros por ano, o que equivale a cerca de 1,5 centímetros ao fim de 20 anos.

Os resultados agora publicados mostram a potencial aceleração deste fenómeno: se o ritmo das duas primeiras décadas se mantivesse igual até ao fim do século, o nível médio do mar apenas subiria mais seis centímetros devido ao conjunto dos mais de 200.000 glaciares.

Ao mesmo tempo, o derretimento vai causar o fim de entre 43% e 83% dos glaciares, de acordo com estimativa do artigo. “A razão para a diferença de perda de massa relativa é que a maioria dos glaciares perdidos são pequenos”, adianta o autor, e tem menos de um quilómetro quadrado de área. No entanto, muitos dos glaciares sobreviventes em 2100 irão continuar a derreter-se se as piores projecções se verificarem.

Enquadramento certo

“Uma descoberta-chave foi que a perda de massa estava relacionada de uma forma linear com o aumento de temperatura”, aponta David Rounce. “Por isso, qualquer redução no aumento de temperatura irá consideravelmente reduzir a perda de massa dos glaciares e a sua contribuição para a subida do nível médio do mar.” Os autores escolheram esta ideia para título do artigo: “Mudança glaciar global no século XXI: cada aumento da temperatura é importante.”

Também um artigo de perspectiva publicado na Science sobre o novo estudo exalta esta escolha de David Rounce e dos colegas. “Os estudos recentes revelaram que um enquadramento optimista das mudanças climáticas é mais eficaz a incitar o público a apoiar políticas climáticas do que quando se dá enfoque à urgência das consequências”, escrevem Guðfinna Aðalgeirsdóttir, da Universidade da Islândia, em Reiquejavique, e Timothy D. James, da Universidade da Rainha, em Kingston, no Canadá, que caracterizam o modelo usado pela equipa como sendo “o mais abrangente até agora”.

O trabalho publicado agora, “apesar de emitir um aviso severo sobre as consequências de acções insuficientes [contra as alterações climáticas], alcança este enquadramento”, avançam os dois investigadores da área da glaciologia.

Ao mesmo tempo, os dois autores não se esquecem do que desembocou das últimas cimeiras do clima (COP – sigla em inglês de Conferência das Partes) das Nações Unidas. O compromisso relativo ao corte das emissões de gases com efeito de estufa que os países fizeram e que saiu da COP26, em 2021, em Glasgow, está associado a uma subida do nível de temperatura de 2,7 graus, o que corresponde ao aumento do nível médio do mar de 11,5 centímetros e ao quase completo fim dos glaciares em regiões inteiras como “a Europa Central, a região Ocidental do Canadá e dos Estados Unidos, e a Nova Zelândia”, lê-se no novo estudo científico.

No ano seguinte, os resultados obtidos na COP27, em Sharm el-Sheikh, no Egipto, “desapontaram”, criticam Guðfinna Aðalgeirsdóttir e Timothy D. James. “Foram feitas várias tentativas na COP27 de enfraquecer as ambições para rapidamente se cortarem as emissões de gases, e as negociações terminaram sem um compromisso de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis”, escrevem. “Parece que estamos encalhados.”

É neste contexto que, por sua vez, David Rounce avalia a importância da investigação agora publicada. “Compreender a resposta dos glaciares às alterações climáticas é crítico para apoiar a adaptação climática e os esforços de mitigação”, diz-nos. “Especialmente quando se considera a contribuição para o nível médio do mar e as mudanças na disponibilidade de água doce, que têm o potencial de afectar milhares de milhões de pessoas, das regiões costeiras até às montanhas mais altas.” Ou seja, a maioria de nós.