O homem que preferiu morrer sob a lava do vulcão

Harry Truman era um viúvo de 83 anos que vivia junto ao sopé de um vulcão nos Estados Unidos. Quando a montanha começou a fumegar, as autoridades tentaram evacuar a área mas o idoso não arredou o pé.

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Monte Saint Helens, em Washington, nos Estados Unidos. GettyImages

Harry Truman era um viúvo de 83 anos que vivia junto ao lago Spirit, no sopé do monte Saint Helens, em Washington, nos Estados Unidos. Morou ali quase meio século, ao lado de um vulcão silencioso. Quando esta estrutura geológica começou a dar sinais de actividade, os serviços de protecção civil determinaram que toda a zona fosse evacuada. Mas Harry não arredou o pé. Dizia a quem queria ouvir – e isso incluía vários jornalistas – que aquela era a sua casa, que deixar aquela paisagem o mataria de desgosto e, assim sendo, mais valia falecer sob a lava.

“Caminhei nesta montanha por 50 anos. Conheço-a. Se entrar em erupção com lava, não me vai apanhar”, afirmava Harry, segundo uma notícia do jornal The Bulletin. Às 8h40 do dia 18 de Maio de 1980, o magma aprisionado explodiu com uma força descomunal, cobrindo toda a área junto ao lago Spirit com um manto fumegante. Tanto Harry como os seus dezasseis gatos ficaram submersos. A teimosia de Harry tornou-o uma espécie de herói, alimentando a imagem poética de um indivíduo que viveu e morreu como queria.

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Vulcão no monte Saint Helens, em Washington, nos Estados Unidos. John Callery/DR

Descobri a história deste ex-piloto da Primeira Guerra Mundial lendo Ser Mortal (Lua de Papel, 2015), um livro sobre a velhice escrito pelo médico Atul Gawande. “Durante mais de dois meses, o vulcão fumegou. As autoridades alargaram o perímetro de evacuação a 16 quilómetros em redor da montanha. Truman manteve-se teimosamente em casa. Não acreditava nos cientistas, com os seus relatórios pouco convictos e por vezes contraditórios. Tinha medo de que a sua casa fosse pilhada e vandalizada, como acontecera a outra em Spirit Lake. Além disso, aquela casa era a sua vida”, refere o autor.

Atul Gawande recupera a história de Harry Truman para dissertar sobre como os mais velhos podem resistir ao desenraizamento, à mudança súbita para um lar de idosos. Contudo, como li Ser Mortal enquanto decorria a Cimeira do Clima no Egipto, assimilei esta história simultaneamente trágica e heróica como uma alegoria do cepticismo e da inacção climática. O excerto sobre o viúvo de 83 anos fez-me pensar na forma como ignoramos os avisos, desacreditamos especialistas e teimamos em manter os modelos de vida a que estamos habituados.

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As projecções indicam que, até 2080, seremos mais de 10 mil milhões de pessoas a habitar a crosta terrestre. Nós estamos a decidir hoje, no tabuleiro geopolítico que são as cimeiras e as negociações internacionais, como estas pessoas viverão, que temperaturas vão ter de tolerar e com que frequência lidarão com eventos climáticos extremos.

Harry escolheu como queria conduzir a sua vida, do início ao fim – e fê-lo de forma talvez legítima, pois as opções que fez implicavam apenas a si próprio (embora tenha arrastado consigo os animais de companhia). Já as escolhas que fazemos hoje dizem respeito a todos: é injusto que um planeta inteiro, incluindo as gerações seguintes, fique junto ao sopé de um vulcão à espera da torrente de lava.

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