Mulheres humanitárias e o medo que dão aos talibans

Como médica humanitária atendi maioritariamente mulheres. Também atendi homens mas a diferença é que eles teriam tido acesso a cuidados de saúde mesmo que eu não estivesse ali. Elas não.

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ALI KHARA

Cox Bazar, Bangladesh, 2018: hoje sou a única mulher a dar consulta. O banco em frente à cortina que separa o meu consultório do corredor está cheio de mulheres que aguardam. Os médicos dos consultórios ao lado param para conversar. Não há homens a aguardar e as mulheres querem ser atendidas pela médica-mulher. Se nem eu nem outra médica estivéssemos aqui, iriam embora e voltariam a tentar amanhã. Ou depois. Ou depois. À espera da mulher que há-de vir. Se vier.

No Afeganistão já não vem. Dizem que não vem, que não pode vir. Que trabalhar numa organização não é lugar que uma mulher possa ocupar. Também não podem estudar, não vão elas depois de acabar os estudos querer ocupar lugares que só os homens devem ocupar. Quem tem medo de mulheres que não têm medo de ocupar todos os lugares? Tantas mãos no ar.

Muitas organizações anunciaram a saída do país: Save the Children, IRC, Care International, ActionAid, Action Contre le Faim. Dizem que não conseguem garantir o seu trabalho sem as suas trabalhadoras mulheres. Costumamos dizer que o mundo pára quando as mulheres param, mas o mundo tem de parar ainda mais quando as mulheres são forçadas a parar.

Passei parte dos últimos anos a trabalhar como médica humanitária a atender maioritariamente mulheres. Também atendi homens mas a diferença é que eles teriam tido acesso a cuidados de saúde mesmo que eu nem eu nem outra médica mulher estivéssemos ali. Elas não. Mulheres humanitárias. Chama-se assim.

Conheci muitas nos campos de pessoas refugiadas onde trabalhei. Mediadoras culturais, parteiras, assistentes sociais, médicas, advogadas, a trabalhar em logística, enfermeiras, professoras, mulheres. Sem elas, as mulheres a viver nesses locais não tinham acesso a cuidados de saúde, à distribuição mensal de comida, a educação, a atendimento de apoio a sobreviventes de violência de género, a apoio legal, a nada. Chegavam à fila e voltavam para trás. Hoje não há mulheres mas elas hão-de vir. Avisem as outras. Voltam para as tendas, para as casas, para os contentores, dependendo do sítio. Devolvidas ao local invisível onde a sociedade patriarcal e sexista as quer. Devolvidas à incapacidade de dialogar, de aceder a direitos fundamentais, a cuidados básicos.

As mulheres humanitárias são fundamentais em contextos onde as mulheres só estão autorizadas - pelo patriarcado - a comunicar e interagir com outras mulheres. Mas não é só para garantir o acesso a direitos que têm de existir mas porque existir é um exercício do seu próprio direito. Têm de existir porque têm o direito a ocupar todos os lugares, livremente, sem violência. Sem que isso seja considerado um acto de coragem ou rebelião. Sem que isso lhes ameace a vida ou se ergam chicotes.

Esta semana ouvia a activista afegã Pashtana Zalmai Khan Durrani dizer que o objectivo do talibans é que as mulheres tenham o menor poder possível. Diria, portanto, que os talibans têm medo das mulheres. Têm medo que se organizem politicamente, que se revoltem, que lhes retirem o poder absoluto que acumularam indevidamente, que exijam direitos que ameacem a sua supremacia imposta. Têm medo que as mulheres não tenham medo. Ou que ainda que tendo medo, tenham tão pouco a perder que resistir e desobedecer parece inevitável.

No Afeganistão, hoje não há mulheres. Mas elas hão-de vir. Hão-de voltar. Sem que nunca se tenham ido. Proíbam-nas de trabalhar em cargos públicos ou nas organizações humanitárias e elas organizar-se-ão nas escolas e faculdades, proíbam-nas de estudar e elas organizar-se-ão na rua, proíbam-nas de estar na rua e elas organizar-se-ão em casa, mas não se surpreendam no dia em que a revolução explodir e vos apanhar desprevenidos, mas não a elas. Não a elas. Que antes de explodir já fazem sentir a terra tremer, revolução embrionária, em silêncio enquanto não se puder gritar, palavras que ecoam em todo o lado: não há lugar que ocupes que eu não possa ocupar.

Em solidariedade com as mulheres em luta.

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