Reencontrei quem sou no silêncio

Hoje apeteceu-me partilhar a experiência, talvez por se avizinhar o Natal, cujo verdadeiro significado se traduz por renovar a nossa humanidade.

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"Passamos a maior parte do tempo a fugir de nós" Tessa Rampersad/Unsplash

… Que bom vai este Natal, estar sentada na sala de jantar da casa minha infância, a saborear as rabanadas do meu pai e a roupa velha da minha mãe…

Pensamento que despontou entre os que se iam dissolvendo, quando estava ontem em meditação. Nem sempre sossegar a mente é sinónimo de atenção plena, às vezes basta desacelerar a torrente de ansiedade que nos atropela, enquanto a calma se revela pela essência das verdadeiras emoções, no aqui e agora.

Reencontrei-me há uns anos, no silêncio do arvoredo, na caminhada ao fim do dia.

Tinha-me perdido, já nem me lembro quando. A vida era em modo automático e nos intervalos seguia o meu rebanho social, obcecada pelo normal, vida padronizada, desfeita em futilidades, disfarçada em vaidades, cheia de coisas materiais e vazia de mim, sempre a ansiar por mais de tudo, e cada vez mais, sem nada.

Depois do caos onde vagueei nesses anos dos quais apenas guardei na memória as boas lições, tive a sorte de um dia ser bafejada pela epifania, folheava um livro sobre mindfulness, lembro-me como se fosse hoje.

Despertado o interesse, entranhado o processo de aprendizagem, lenta e progressivamente, nunca mais fui quem não era.

Hoje apeteceu-me partilhar a experiência, talvez por se avizinhar o Natal, cujo verdadeiro significado se traduz por renovar a nossa humanidade. Talvez quem me leia sinta vontade de parar e se volte a reencontrar, também.

Passamos a maior parte do tempo a fugir de nós, inventamos outras personagens, é mais fácil viver na superficialidade do que mergulhar na profundeza da vida interior, cheia de perguntas sem respostas imediatas. Causa dor reflectir no que há-de vir, inevitavelmente quando chegar o fim, e ninguém gosta de sofrer. Por isso, vamo-nos iludindo com a vã ideia de que nunca vai chegar a nossa vez.

Aceitar que esse dia vai chegar, num amanhã qualquer, não implica ficar atormentado, nem viver viciado no pico constante de dopamina para aproveitar a vida ao limite.

Pelo contrário, ajuda a que aproveitemos o que realmente importa no tempo que ainda temos pela frente, na certeza consciente da nossa efemeridade.

A pandemia foi uma longa agonia em que a vida de todos nós ficou virada do avesso.

A restrição da nossa liberdade de interacção com os outros devia ter servido de lição para aquilo que na verdade não tem preço: o amor, os afectos do coração, a saúde.

A maioria de nós esqueceu depressa o inferno de viver em perigo iminente, rapidamente regressou ao modo indolente, dormente, e onde o ego é rei e senhor.

Quando a guerra na Ucrânia estalou, foi desmultiplicada a solidariedade um pouco por toda a parte, despertado novamente o nosso medo de perdermos também o nosso conforto, e entretanto com o dessensibilizar pelas notícias difundidas repetidamente, voltamos ao habitual estado de indiferença.

A humanidade está definitivamente acometida por uma bizarra doença: tem o coração em ponto morto, sintomas de memória fugaz e de visão desfocada.

Não sou ninguém, nem me considero superior ou iluminada, mas tento ser capaz, já há algum tempo, de evitar apanhar outra vez essa doença.

Lembro-me bem da noite de consoada em que jantava sozinha, no auge da pandemia, embora felizmente privilegiada por ter os meus pais neste mundo, e no dia seguinte o meu pai enfrentou o perigo e me levou, mascarado e sem entrar em minha casa, a roupa velha da mãe e as suas rabanadas. Fiquei consolada.

Foi por isso que ontem enquanto meditava, deliciada pelos tons de Dezembro, na natureza que contemplava, permiti a doce invasão da imagem da próxima consoada no meu coração.

… Que bom vai este Natal, estar sentada na sala de jantar da casa da minha infância, a saborear as rabanadas do meu pai e a roupa velha da minha mãe…

Se Deus quiser.

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