Carreiras especiais da AT: uma falácia!

Vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos questiona primeiro-ministro em carta aberta.

Exmo. Sr. primeiro-ministro,

Descontente, escrevo-lhe porque muitos dos colegas das carreiras especiais da AT, Autoridade Tributária e Aduaneira, estão, igualmente, descontentes.

Tive, em tempos, o prazer, enquanto sindicalista, de estar numa reunião com V. Ex.ª, no Largo do Rato, em Lisboa, onde, apesar de nada ter sido resolvido, se debateram e se trocaram ideias, o que é sempre positivo. Outros vivem ou viveram fechados em gabinetes, prepotentes e incapazes sequer de ouvir as bases, o povo, os sindicatos. E esse certamente não é o caminho para uma democracia. Este mérito tenho de lho reconhecer.

Mas a verdade é que o nosso país não está bem, o rumo não é claro e as prioridades também não.

Ouvi V. Ex.ª, o Sr. ministro das Finanças e ainda o Sr. secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, absolutamente alinhados, afirmarem que iriam aumentar mais a carreira de técnico superior, relativamente às carreiras especiais, porque estas já foram muito beneficiadas ao longo dos anos!

Desde logo fiquei convencido que essa ideia só pode ter tido origem no discurso de alguém que defende as carreiras gerais e que a trabalhou nos bastidores com o Governo, o que é legítimo, mas que desconhece as carreiras especiais da AT. Custa-me que o Governo adopte esse discurso, porque não é verdadeiro. Demonstrar-lho-ei nesta breve reflexão.

Na AT, para progredir na carreira, os trabalhadores, historicamente, tiveram de fazer ciclos de avaliação permanente, com testes escritos de elevado grau de dificuldade, os quais exigiam muitas horas de formação e estudo, sendo realizados em dias que deviam ser de descanso. Alguns, reprovando, ao fim de três anos de esforço e estudo, ficavam na mesma posição remuneratória que detinham anteriormente. Os que passaram nesses procedimentos perderam sempre os pontos de SIADAP!

Muitos trabalhadores na AT, que estão colocados em posições remuneratórias entre a 2.ª e a 6.ª, entre 12 possíveis, têm nove, dez, 11 e mesmo 14 ou 16 testes escritos feitos para as atingir. Ainda nem conseguiram passar do meio da tabela! Desafio o Sr. primeiro-ministro a consultar essas provas de avaliação para comprovar o grau de exigência que existe nestas carreiras especiais.

Essas provas são realizadas aos sábados, sendo que muitos de nós percorremos centenas de quilómetros para chegar a Lisboa e, posteriormente, estar quatro a cinco horas, sob grande tensão e após meses de estudo, numa escola com mesas e cadeiras desenhadas para jovens adolescentes, para tentar realizar, com sucesso, esse desafio, acreditando que com isso estaríamos a fazer um percurso numa carreira de elite do Estado.

Diz o Sr. primeiro-ministro que as carreiras especiais já negociaram com o Governo e, por isso, estão beneficiadas!

Pois bem, até 2019 um inspector na AT entrava na carreira pela posição 535 (ligeiramente acima da posição 27 da TRU) e com cinco anos de casa poderia almejar, estudando, passando nos testes e tendo uma boa avaliação de desempenho no SIADAP, chegar à posição remuneratório 650 (aproximadamente a 35 da TRU).

Actualmente, e porque o Governo não cumpriu com o que negociou e assinou em actas oficiais, matando a avaliação permanente, o mesmo trabalhador, se for adequado nesse sistema obtuso que é o SIADAP, demora 20 anos para lá chegar. E diz o Governo que está melhor a carreira porque negociámos?!

Poderia estar menos mal, se o Governo cumprisse a palavra dada e assinada em actas, mas não está.

O acordo assinado com alguns sindicatos é uma falácia. Custa-me compreender, enquanto sindicalista que também sou, como é que um sindicado pôde assinar um acordo plurianual para quatro anos, tão mau. Senão vejamos.

Razão e inteligência mostrou o Sr. primeiro-ministro ao dizer, há muitos meses, que pretendia subir o salário médio em 20%, em quatro anos. Foi de mestre.

Só este ano a inflação alimentar, fulcral para as famílias, vai ficar quase nesse valor. No melhor dos cenários, o BCE tem o seu objectivo de inflação definido para 2%. Esse é o valor aproximado que o Governo propõe para aumentos nos quatro anos. Ou seja, na melhor das hipóteses para a inflação, que lamentavelmente não vai acontecer, os trabalhadores com esse acordo podem perder muitíssimo, ou perder pouco, mas vão sempre perder.

Nas carreiras especiais da AT, não podemos sair do trabalho para dar explicações em casa, ou fazer contabilidade para empresas, ou atender no nosso consultório privado, ou fazer seja lá o que for para obter mais rendimento para as nossas famílias, tendo por base os conhecimentos técnicos e operacionais que possuímos.

Nas carreiras especiais da AT, recuperamos dinheiro dos impostos, em processos inspectivos e executivos, que representam milhares de milhões de euros para os cofres do Estado. Ninguém gosta de nós. Ninguém fica feliz por pagar impostos. Vestimos essa camisola, carregamos esse fardo, porque é nuclear para a existência do nosso Estado de direito democrático.

Acresce que, se de facto algumas carreiras especiais estão fora do SIADAP e têm negociado com o Governo a valorização profissional obtendo melhores condições de trabalho, isso não se verificou na AT, antes pelo contrário.

Na AT, colegas com décadas de experiência e provas escritas e operacionais dadas no combate à criminalidade fiscal, quase sempre ligada a criminalidade económica, com funções em vários processos com o Ministério Público, são, actualmente, colocados a atender o telefone no apoio aos contribuintes, em matérias que uma simples consulta ao Portal das Finanças resolveria.

Outros, que tiveram a promessa de ser integrados nas carreiras inspectivas, viram as suas expectativas defraudadas porque o Governo assina actas de compromisso em reuniões formais e depois não cumpre (como aconteceu relativamente ao decreto-lei 132/2019).

Nas carreiras gerais, o Governo propõe aumentos salariais e a manutenção de pontos de SIADAP, e bem. Na AT, aos colegas das carreiras subsistentes, é-lhes sugerido que se proponham a um concurso, que façam um período experimental que nunca será inferior a um ano (costumam ser três), que não tenham, em consequência, nenhum aumento remuneratório e ainda, por incrível que possa parecer, que percam os miseráveis pontos de SIADAP que possam ter acumulado ao longo da última década. Acha isto justo, Sr. primeiro-ministro?

A AT está a ser destruída. O saber de gerações em matéria fiscal e aduaneira está a ser deitado ao lixo. O processo de centralização da organização em Lisboa, para além de ser absolutamente contrário àquilo que o Governo afirma querer fazer, é altamente lesivo do combate às injustiças fiscais e, como tal, do combate às injustiças sociais. Criar um Ministério da Coesão Territorial e gerir a AT desta maneira é iludir os portugueses.

Quem veio de fora e olhou para Portugal nos anos recentes da pré-bancarrota referenciou a inspecção tributária e aduaneira como pedra central no Estado. Todavia, este Governo faz dos inspectores, telefonistas, considera que ganham demais, piora as suas carreiras e percurso profissional e nunca tem sequer uma palavra de apoio ou reconhecimento público.

Só o tempo dirá se o país fez a escolha certa. Por consideração e respeito, nos termos em que comecei este texto, fica aqui expresso o alerta. Espero estar errado, mas temo que, quando o país mais precisar, vai perceber que destruiu uma organização nuclear para a defesa do Estado, e da qual depende o bom funcionamento de todas as outras que permanentemente aparecem na comunicação social.

Sugerir correcção
Comentar