Condições de Trabalho e o Estado de Direito

O trabalho suplementar não pago é um flagelo social, que deve ser definitivamente afastado do Estado de Direito. O não respeito pelo pagamento de todo o trabalho efectuado deve ser criminalizado.

A voracidade dos dias leva e traz temas de discussão, no âmbito mediático, à velocidade da luz. É por isso importante separar o trigo do joio.

Os 7673 quilómetros de estrada que separam Doha de Beja não permitem individualizar duas realidades que se cruzam e que têm sido referidas nos últimos tempos: condições de trabalho.

Em Doha e em Beja deparamo-nos com denúncias e acusações de exploração de seres humanos através de abuso de mão-de-obra. Lá e cá, o problema é o mesmo: exploração do homem para o exercício ilegítimo da actividade laboral.

Este não é, no entanto, o tema principal deste artigo. É outro, mas que começa neste. E começa por uma razão simples: a denúncia de condições de exploração extrema de trabalhadores, ou de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, permitiu trazer o tema para a ordem do dia e, portanto, o debate sobre a ampla questão das “condições laborais” não pode deixar de ser feito, em toda a sua plenitude.

Sendo assim, temos de conversar sobre um dos temas mais relevantes para os trabalhadores portugueses e suas entidades patronais, públicas ou privadas, quer na dimensão laboral, quer na social e económica: trabalho suplementar, sua efectivação e pagamento.

Trabalho suplementar, recordo, é todo aquela prestação laboral que excede o limite do horário de trabalho e que é efectivada por determinação da entidade patronal. Com efeito, há muito tempo que tenho vindo a defender, na senda do que preconiza a Organização Mundial do Trabalho, que o trabalho suplementar não pago é um flagelo social, que deve ser efectiva e definitivamente afastado do moderno Estado de Direito.

A Constituição da República Portuguesa e os Tratados e Convenções Internacionais a que Portugal está vinculado, bem como a imposição ética de que todo o trabalho deve ser remunerado, impõem que as autoridades públicas, nomeadamente a Autoridade para as Condições do Trabalho e o Ministério Público, actuem neste âmbito.

É por isso mesmo que tenho defendido, em diversos fóruns, que essa actuação deve ser tripla: por um lado, devem ser criadas condições para formar e informar os trabalhadores e as entidades patronais para a necessidade de se remunerar e compensar todo o trabalho suplementar, apostando-se na prevenção; depois, devem ser formadas equipas de investigação que efectivamente fiscalizem a prestação deste trabalho, impondo-se, como obriga a Lei no artigo 231.º do Código do Trabalho, que o empregador mantenha um registo de trabalho suplementar em que, antes do início da prestação de trabalho suplementar e logo após o seu termo, são anotadas as horas em que cada uma das situações ocorre – registo que deve ser assinado pelos trabalhadores; por último, deve apostar-se na criminalização das condutas violadoras da obrigação de pagamento de trabalho suplementar, através de um processo de investigação que respeite as regras processuais aplicáveis. Sejamos claros, para que não subsista qualquer dúvida: o não respeito pelo pagamento de todo o trabalho efectuado deve ser criminalizado.

Este tema é tão ou mais sensível, quanto no âmbito de processos judiciais que se destinem a efectivar a compensação de trabalho suplementar é essencial demonstrar que o trabalho suplementar foi prestado e que essa prestação foi determinada pela entidade patronal.

Essa demonstração, exigência, sublinhe-se, legal, é feita através de prova. Para esse efeito, as escalas de serviço e, ou, documentos que provem a efectiva prestação de trabalho suplementar, determinado pela entidade patronal, é absolutamente essencial à procedência das respectivas acções.

É nesta lógica de raciocínio que se insere a obrigatoriedade do já referido registo de horas de trabalho, de forma a que o trabalhador tenha acesso ao efectivo número de horas que trabalhou.

Sucedendo, porém, que esse registo não é respeitado por algumas entidades patronais, como se tem verificado em acções inspectivas da Autoridade para as Condições do Trabalho, o acompanhamento do respectivo processo contra-ordenacional tornou-se fundamental para garantir, no futuro, a compensação dos trabalhadores pela execução do seu trabalho.

A relação desproporcional que se sedimenta no mundo do Direito do Trabalho tem, nesta sede, uma efectiva e necessária obrigação de protecção pública: o Estado não pode deixar de se preocupar com a propagação de Trabalho Suplementar não compensado que se tem verificado, considerando, até, a falta de denúncia, pelas mais diversas razões, todas entendíveis, por parte dos trabalhadores.

É certo que entre as situações claras de violação dos Direitos Humanos e aquilo que aqui tratei há uma diferença substancial, sublinha-se, de grau; mas a essência da questão é a mesma: é fundamental, fulcral, diria mesmo, que todos saibamos que o trabalho deve ser prestado em condições de dignidade social e, por isso, deve ser pago – e isso não é mais do que o corolário da relação laboral do Estado de Direito em que vivemos.

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