Casa da sorte

Nas democracias que respeitam a separação de poderes, os governos e os parlamentos não anulam decisões dos tribunais sobre casos individuais por acto normativo ou administrativo.

Quem jogou monopólio lembra-se daquela carta que saía quando se parava na casa da sorte: “Você está livre da prisão.” Um salvo-conduto que safava o jogador se o azar dos dados o atirasse para a prisão. Há casos muito parecidos, que não são de jogos, nem com dinheiro a fingir. Vamos ver um deles, por partes, para se perceber bem.

(i) Está na lei que os titulares de cargos públicos que violam normas financeiras podem ter de reintegrar o dinheiro gasto indevidamente pelo Estado, mesmo que não tenham tirado qualquer benefício pessoal. (ii) O Ministério Público, que é autónomo do governo, tem competência para investigar essas infracções e levar os eventuais responsáveis a tribunal. (iii) As pessoas acusadas são representadas por advogados e têm à sua disposição todas as garantias de defesa, como acontece em qualquer processo judicial. (iv) Existe um Tribunal de Contas independente, com juízes imparciais, para verificar se houve violação de normas financeiras e se os acusados devem reintegrar os valores pagos ilegalmente. (v) Em 18 de Fevereiro, o Tribunal de Contas condenou 3 ex-membros do conselho de administração da Entidade Reguladora do Sector Energético (ERSE) a reintegrarem cerca de 1.4 milhões de euros, por terem ilegalmente determinado o pagamento, a si próprios e ao restante pessoal, de remunerações, como retribuição suplementar da direcção, prémios de assiduidade e desempenho, abonos para falhas, complementos de abono de família, subsídios de estudo a dependentes, etc.

Tudo normal, certo? Não, errado! Faltam os dois capítulos principais.

(vi) Aqueles 3 ex-membros do conselho de administração da ERSE, segundo a imprensa, são ex-governantes e deputados, dois do PS e um do PSD. (vii) Em 11 de Novembro, o PS apresentou uma estranha proposta de alteração do Orçamento de Estado. Convém recordar que a ilegalidade que tinha estado na base da condenação do Tribunal de Contas era a falta de homologação das remunerações pelo governo. Pois bem, sob o pretexto de compatibilizar o regime legal com as Directivas do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, a proposta do PS previa que se consideravam homologadas todas as remunerações e demais regalias e benefícios pagos ao pessoal da ERSE, com efeitos à data da entrada em vigor das directivas, ambas de 2009, e que ficava impedida a efectivação de qualquer responsabilidade, nomeadamente a reintegratória, por pagamentos ilegais. O pretexto era falso porque aquelas directivas não levam a autonomia das entidades reguladoras ao ponto de os Estados terem de pôr na lei que podem pagar salários não autorizados pelo governo. Portanto, em forma simples, sem motivo que se visse, na prática, aquela “norma-fotografia” servia para anular o efeito da sentença condenatória – lá está, a tal carta da sorte, “você está livre da prisão”, para três ex-governantes e deputados. No momento em que escrevo este texto, desconheço se a proposta do PS chegou a ser aprovada. A votação final foi na passada sexta-feira e não consegui localizar o texto no site do Parlamento. Porém, para o efeito do que se segue, isso é indiferente.

Nas democracias que respeitam a separação de poderes e as regras do Estado de direito, os governos e os parlamentos não anulam decisões dos tribunais sobre casos individuais por acto normativo ou administrativo. Mesmo que isso seja formalmente legal, é materialmente ilegítimo. Esse princípio está afirmado nas recomendações R(94)12, de 13/11/1994, e CM/Rec(2010)12, de 17/11/2010, do Conselho da Europa aos Estados-membros, das quais resulta que, à excepção das normas sobre amnistia, perdão ou outras similares, os poderes executivo e legislativo não devem aprovar medidas que invalidem retroactivamente decisões judiciais. Se a lei está mal, muda-se para o futuro. Até lá, cumpre-se a lei e obedece-se aos tribunais.

Portanto, em epílogo, não basta proclamar em abstracto a subordinação da maioria absoluta ao poder judicial, para afastar os receios de abuso. É preciso observá-la diariamente na prática política. Aquela proposta do PS é uma flagrante violação do princípio da separação de poderes. Uma violação consumada, se tiver chegado a ser aprovada, ou meramente tentada, se tiver caído pelo caminho. Em qualquer caso, uma acção política ilegítima e imoral.

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