Mundial no Qatar: a deficiência usada como diversity washing

Não se pode abraçar selectivamente a diversidade: se respeitamos as pessoas com deficiência, devemos o mesmo respeito a outras minorias, incluindo as mulheres e a comunidade LGBTQIA+.

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O actor Morgan Freeman e o influencer Ghanim A-Muftah na cerimónia de abertura do Mundial EPA/Friedemann Vogel

A cerimónia de abertura do Mundial de Futebol no Qatar incluiu um dueto entre o actor Morgan Freeman e o influencer Ghanim A-Muftah, um jovem qatari que nasceu com síndrome de regressão caudal. O diálogo entre as duas figuras, que simbolizam minorias (a comunidade negra e com deficiência), evocava a importância da tolerância. O espectáculo seria até enternecedor se não fizesse parte de uma patética tentativa do país anfitrião, onde um regime autocrático oprime pessoas em função do género ou da orientação sexual, de apresentar-se como uma nação que faz o elogio da diversidade.

Morgan Freeman, que já interpretou Deus e Nelson Mandela no cinema, recorreu à sua voz inconfundível para perguntar como países com culturas tão díspares poderiam ultrapassar as diferenças e reunir-se no mesmo lugar à volta do futebol. “O que nos une aqui, neste momento, é muito maior do que o que nos divide. Como podemos fazer isso durar mais do que um dia?”, questiona o actor norte-americano. Ghanim A-Muftah responde: “Com tolerância e respeito, podemos viver juntos sob uma grande casa.”

Os grandes eventos desportivos não ocorrem num vácuo sociopolítico. Existe sempre um viés de poder e dinheiro nas escolhas do país anfitrião. Não vou discorrer aqui sobre as razões pelas quais a escolha recaiu sobre um país onde os direitos humanos são desrespeitados. Milhares de caracteres já foram dedicados ao tema neste jornal. Interessa-me falar especificamente desse esforço, muito claro na cerimónia de abertura e noutras iniciativas, em transmitir uma imagem de tolerância e respeito. Se um país faz publicamente o elogio de valores que não contempla na sua própria legislação, isto tem um nome: diversity washing.

O diversity washing é uma espécie de diversidade só para estrangeiro ver. É quando uma empresa coloca a bandeirinha do arco-íris no perfil oficial do Facebook, mas dá ordens aos recursos humanos para evitar a contratação de “homens efeminados”, por exemplo. Ou, pior, quando contratam membros de grupos minoritários para desempenhar funções que, no fundo, têm um único objectivo: transmitir uma boa imagem pública, construir uma relação de confiança com nichos de mercado emergentes e, assim, obter ganhos em termos de prestígio, lucros ou vendas.

Os valores convocados à montra do Mundial – a tolerância e o respeito – fazem corar todos aqueles que, desde a escolha do país anfitrião, têm sublinhado o facto de o Qatar violar sistematicamente direitos fundamentais. Não se pode abraçar selectivamente a diversidade: se respeitamos diferenças funcionais, devemos o mesmo respeito a outras minorias. Em teoria, seria louvável garantir representatividade às pessoas com deficiência no evento inaugural, assim como acessibilidade nos equipamentos desportivos. Contudo, à luz dos milhares de migrantes mortos na construção dos estádios e das minorias oprimidas, esta tolerância selectiva com as pessoas com deficiência vale muito pouco.

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