A questão da etnia, da raça e do género na proposta de revisão constitucional do PS

Num país que ainda lida com a sua memória histórica colonial, retirar a ‘raça’ do articulado constitucional parece meio caminho para voltarmos ao ponto de que o racismo não existe.

No âmbito do período em aberto de submissão de propostas de revisão constitucional, veio a público que o Partido Socialista (PS) pretende, em várias medidas, no âmbito dos Direitos, Liberdades e Garantias (DLG), consagrar a identidade de género e substituir raça por etnia.

Ambas as propostas incidem sobre o articulado do número 2 do artigo 13.º do texto constitucional, relativo ao Direito à Igualdade, e ao caso à não-discriminação.

Dada a relevância da discussão, que incide sobre a lei suprema do Estado e verte sobre conceções sociais e reflexões teóricas no âmbito da Academia, impõe-se uma abordagem sistemática ao que está em causa.

Em primeiro lugar, o direito à igualdade encontra-se consagrado no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, sendo, por tal, limite material à revisão constitucional (art.º 288.º/d). Isto significa que se trata de direitos que não podem ser suprimidos, o que não significa que não sejam objeto de discussão e reformulação e, por tradição do regime democrático e liberal, expandidos no sentido de integrarem mais garantias dos cidadãos. O que é o caso, na questão da identidade de género.

Para se entender o alcance da discussão, precisamos compreender os conceitos que ocupam o núcleo da questão:

1. Dignidade humana, é o valor apriorístico do Direito, o farol dos direitos fundamentais (direitos humanos, na locução internacional). Tal facto é evidenciado por integrar o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa, razão pela qual Vital Moreira e Gomes Canotilho (2007: 199) a tomam por precondição da legitimação da República. Jorge Miranda e António Cortês (2017: 61) defendem que o princípio da dignidade da pessoa humana representa o “prius incondicional de todo o Direito”, donde o Estado se encontra obrigado a conformar a sua ordem jurídica a tal princípio supremo (José Reis Novais, 2004). Assim, a dignidade humana é a pedra basilar de todo o ordenamento jurídico nacional e internacional, valor e princípio a partir do qual se estrutura a lei e ao qual o Estado tem o dever de dar resposta e garantia.

2. Igualdade, vertido no artigo 13.º referido, é um princípio complexo, a que a doutrina tem dado acolhimento consensual. Vital Moreira e Gomes Canotilho consideram o princípio da igualdade como um dos mais estruturantes do sistema constitucional global (2007: 336). É consensual que o princípio da igualdade implica tratar igualmente o que é igual e tratar desigualmente o que é desigual, máxima do Direito Constitucional, que implica políticas públicas de correção de desigualdades fáticas (económicas, sociais e culturais), de modo a atingir-se a igualdade entre os portugueses. Deste modo, o princípio da igualdade não detém apenas o primado da igualdade de todos perante a lei (13.º/1), mas igualmente a da não-discriminação (13.º/2), o qual implica, no entendimento da doutrina, uma atuação do Estado no sentido de efetivar a igualdade possível entre pessoas.

3. Identidade de género, conceito que integra as chamadas guerras culturais, não sendo consensual, e que designa, numa assunção positiva, a forma como as pessoas concebem a sua identidade além da biologia e da distinção clássica pénis igual a homem, vagina igual a mulher. Os críticos desta formulação chamam-na de ideologia de género, entendendo ser uma desvirtuação teórica resultando do marxismo cultural introduzido pela Teoria Crítica, que normalizou o que anteriormente se designava por “disforia de género” como patologia de dissonância cognitiva. Trata-se de uma tensão entre correntes, uma que advoga o direito à autodeterminação e outra que invoca o património histórico e cultural ocidental judaico-cristão de referências sociais.

4. Raça e etnia, trata-se de conceitos que devem ser considerados em separado. Com efeito, embora não existam ‘raças’ do ponto de vista biológico, a verdade é que a raça é considerada uma construção social com operatividade nas nossas sociedades, operando, como diz Sílvio Almeida (2019: 22-24), como “uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. Ou seja, seguindo a clássica ideia de Bonilla-Silva (1997), embora a ‘raça’ biologicamente não exista, ela opera na forma como as sociedades se organizam, estruturam e articulam os diferentes grupos ditos ‘racializados’. A etnia, por seu turno, opera como identificador cultural, sendo um conceito relativo à partilha de um conjunto de traços de identidade cultural dentro de um grupo humano. Por exemplo, sujeitos negros podem ser alvo de discriminação com base na categoria de ‘raça’, ou seja, por via do racismo, mas não podem apresentar racismo entre si, porque o viés não é a ‘raça’, mas outros, como a etnia. Por exemplo, durante a ocupação inglesa da atual Nigéria, os ingleses manifestavam racismo face aos africanos locais, com base na ideia de inferioridade racial dos negros, enquanto os povos que compunham aquele vasto território, conhecido como Yorùbá, manifestavam preconceito étnico entre si.

Efeitos concretos para a discussão da revisão constitucional

De modo sistemático e sumário, compreende-se que a proposta do Partido Socialista de inclusão da identidade de género não detém uma natureza consensual. Tomada pelo seu viés progressista, conforma-se com o respeito por dois princípios constitucionais interligados: (i) o reconhecimento abrangente do supraprincípio da dignidade humana e da livre formação da personalidade e deve incluir a autodeterminação de identidade (art.º 26.º/1, CRP). Relativamente à substituição da categoria ‘raça’ por ‘etnia’, constata-se que se trata de um erro, dado os significados divergentes dos conceitos e, sobretudo, a relevância que a ‘raça’ adquire para compreender e combater o racismo. Uma vez que o racismo compreende uma disposição para a subalternidade, para a segregação e ostracização de pessoas com base num critério psicológico e socialmente construído de ‘raça’, a supressão do mesmo do articulado do número 2 do artigo 13.º cria um problema de aplicabilidade da lei. De que modo se determinará o imperativo lugar de não-discriminação com base na ‘raça’ se ela não estiver lá? Poder-se-á aplicar a interpretação extensiva proposta por Jorge Miranda e Rui Medeiros (2017: 172), de que o catálogo que o número 2 do artigo 13.º apresenta de não-discriminações deve ser visto como exemplificativo. No entanto, dado o peso histórico da categoria ‘raça’, a forma como ela consolidou fenómenos de opressão e exploração relativos ao colonialismo, com efeitos concretos sentidos até hoje, a sua supressão parece prejudicar mais do que beneficiar, já que o racismo não desaparece por se abandonar a categoria ‘raça’. Pelo contrário, tal medida abre um vazio legislativo perigoso, porque impossibilita o desenvolvimento de políticas públicas de combate ao racismo, remetendo para a doutrina a interpretação do preceito constitucional.

Num país que ainda lida com a sua memória histórica colonial, que precisa de avaliar o tipo de racismo que existe na sua sociedade e qual o grau de impacto na vida de pessoas racializadas, retirar a ‘raça’ do articulado constitucional parece meio caminho para voltarmos ao ponto de que o racismo não existe. Além de ser uma desvirtuação de um texto constitucional verdadeiramente garantístico.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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