Aborto, guerras culturais e Estados Desunidos da América

Somos confrontados com a mais séria hipótese de uma guerra civil no país, pois não está em causa um debate entre uma economia de mercado ou uma economia mais protecionista, mas sobre modelos antagónicos de sociedade.

Num artigo de 2018, Fukuyama, imortalizado pela teoria do “fim da história”, debate sobre a emergência de uma nova polarização esquerda/direita que se afasta de matérias económicas para se posicionar sobre conteúdos pós-materiais. Alude o pensador às guerras culturais que atravessam o Ocidente e colocam em causa a ideia de chão comum como plataforma de consensos que garante a vitalidade da democracia liberal.

O conceito de guerra cultural (kulturkampf) aparece no século XIX, na sequência da disputa entre Bismarck e a Igreja Católica e remete, hoje, para uma polarização social entre uma esquerda globalista e uma direita nativista, em torno de assuntos como direitos abortivos, ações afirmativas e direitos LGBTIQ+, imigração e refugiados, nacionalismo versus cidadania global.

Para pensadores como Hunter e Wuthnow, a ideia de guerras culturais encontra-se ligada a conflitos sobre assuntos não negociáveis, dado se enraizarem na esfera cultural e moral dos sujeitos. Hunter, num trabalho de 1991 que já adiantava o que se tornaria a América de hoje (Culture Wars: The Struggle To Control The Family, Art, Education, Law, and Politics in America) avançava que tal polarização representa um elevado risco para a democracia americana, dado que cada lado da contenda se concebe como portador da verdade. Pelo que a ideia de violência estaria sempre subjacente e em ebulição, donde a noção de guerra contida no conceito deveria ser tomada à letra.

Esta proposta teórica veio a revelar-se certa, com a eleição de Donald Trump, cuja campanha e governação foram marcadas por uma hostilização das agendas minoritárias da esquerda e uma aproximação às doutrinas supremacistas raciais e culturais, levando vários autores a ver no período trumpista a ascensão da demagogia e do populismo na América, com uma perigosa aproximação ao fascismo. A invasão do Capitólio representou um ataque à democracia liberal e à ideia de pluralidade como elemento identificador das sociedades ocidentais, em nome de uma América culturalmente monista, moralmente conservadora, que combate o chamado “marxismo cultural” e o seu “politicamente correto”.

É neste plano de combate pelo coração da América, entre um universo republicano cada vez mais radicalizado em torno das agendas religiosas cristãs e da sua moral patriarcal, meritocrática, nativista e securitária, e um mundo sobretudo urbano da esquerda cada vez mais centrado nas agendas minoritárias e identitárias. A recente reversão do “Roe contra Wade, de 1973, retira a cobertura constitucional ao direito à interrupção voluntária da gravidez (aborto), empurrando para os estados a determinação da cobertura legal do procedimento. Isto implica uma dose elevada de arbitrariedade dos estados sobre os direitos fundamentais, além de servir de precedente para a reversão de outros direitos individuais como o casamento homossexual.

Em termos práticos, ao transferir para os estados a decisão legislativa, o Supremo Tribunal, de maioria conservadora, abriu a porta a polarização definitiva do país. Uma vez que as questões pós-materiais inerentes às guerras culturais detêm uma impossibilidade de consenso, diferentemente das matérias económicas, torna-se cada vez mais inviável a manutenção do chão comum que fundou a ideia de Estados Unidos.

Ora, regressando a Hunter, somos confrontados com a mais séria hipótese de uma guerra civil no país, pois não está em causa um debate entre uma economia de mercado ou uma economia mais protecionista, mas sobre modelos antagónicos de sociedade, entre um modelo voltado para o multiculturalismo, os direitos das minorias, para um combate ao machismo tóxico, por uma linguagem neutra e inclusiva, pela identidade de género, cada vez mais tomadas nas suas singularidades e exigindo cada vez mais políticas afirmativas e policiando todo o espaço público, e um modelo nativista, anti-imigração, cultural e etnicamente unívoco, de forte expressão moral e civilizacional cristã que encontra a liberdade sexual e nas questões identitárias um “marxismo cultural”. E daí subtrai um pânico moral, agudizado pelas teorias conspiratórias como da “grande substituição” como um plano para islamizar o mundo.

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Agentes da Polícia do Capitólio vigiam manifestação contra a decisão do Supremo Tribunal dos EUA, em Washington, a 24 de Junho SHAWN THEW/Lusa

Se fomos contando com os Estados Unidos da América como exemplo evidente de solidez democrática, de checks and balances, de garantias e progresso cultural e civilizacional (ainda que sobretudo intramuros), hoje temos de olhar e perceber que o Estado da Desunião ameaça ruir as fundações do país. A tempestade é perfeita, com a guerra na Ucrânia, a crise dos cereais, a ameaça da inflação e do desemprego.

Que América teremos, após Biden e eventualmente com o regresso de Trump? Que efeitos terá na Europa? É cedo para dizer. Mas é seguro afirmar que a lógica da democracia liberal pluralista está em crise, lá e na Europa, com o crescimento de partidos e movimentos radicais que visam uma democracia iliberal, baseada na vontade absoluta da maioria cultural sobre os direitos das minorias, princípio fundante da dignidade humana como primado axial dos direitos fundamentais. Tocqueville, em, precisamente, Da Democracia na América, bem alertava que a maioria não tem sempre razão e que há sempre um perigo real da tirania da maioria.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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