No meio de uma guerra ou em crise económica, a melhor forma de ser feliz é a dar

O feto estaria já a sofrer e a cesariana já veio tarde. Por sorte ou por azar estava lá eu, com alguma formação sobre o assunto, mas pouca prática, pois nos nossos hospitais é raríssimo tal suceder.

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O bebé “decidiu” ficar no mundo dos vivos, começou a respirar por si, e depois a chorar tal como se quer DR/Ryan Graybill via Unsplash

No meio da guerra do Congo, como em muitos outros locais em África, uma das cirurgias que se realiza mais frequentemente é a cesariana. São locais do planeta onde com frequência morre o bebé, a mãe ou ambos.

Como tantas outras vezes, fui chamado ao bloco operatório, de urgência, a meio da noite. Cansado de muitos dias de trabalho árduo, quase sem intervalos, fiz um bloqueio subaracnoideu, ou para os desentendidos uma picada nas costas que anestesia o corpo desde o abdómen até aos pés, querendo com isto dizer que a futura mãe estava acordada, a ver e a ouvir aquilo que se passava à sua volta.

Por falta de monitorização do feto, aconteceu aquilo que tantas vezes me aconteceu neste hospital, que foi ter de fazer a reanimação neonatal. Mais uma vez, trocado por miúdos, o feto estaria já a sofrer dentro do útero e a cesariana já veio tarde, por sorte ou por azar estava lá eu, com alguma formação sobre o assunto, mas pouca prática, pois nos nossos hospitais do mundo desenvolvido é raríssimo tal suceder.

Mas este já então recém-nascido precisava de reanimação activa, nesta fase que para alguns determina vida ou morte, que é a primeira vez que respiramos.

Normalmente uma simples estimulação táctil é suficiente para dar este empurrãozinho ao bebé, mas raramente é necessário ventilar através de uma máscara, e quando esta se mostra insuficiente, e temos sinais de que a oxigenação não está a ser adequada, e a frequência cardíaca teima em baixar, o que faz com que o cérebro deste novo ser, possa ter danos irreversíveis por falta de oxigénio a chegar ao cérebro...

Muito rapidamente, sim, porque tudo isto são segundos ou poucos minutos de actuação e decisões difíceis, há que partir para uma forma de oxigenação mais eficaz com a colocação de um tubo na traqueia, actuação que tanto caracteriza o médico anestesista.

Com material simples e até inadequado, ventilei este pequeno ser, fiz compressões cardíacas com dois dedos, e coloquei um cateter venoso no cordão umbilical. Senti as minhas pingas de suor a cair-lhe em cima, e já nem sei se não se misturavam com as minhas lágrimas, mas com a ajuda de um incrível enfermeiro congolês, fomos bem-sucedidos. O bebé “decidiu” ficar no mundo dos vivos, começou a respirar por si, e depois a chorar tal como se quer.

Eu suspirei de alívio. Menos um nado-morto para as estatísticas que ninguém conta. Estava capaz de explodir de felicidade...

Calma, esta história não acaba aqui. Durante todos os minutos da reanimação do recém-nascido, em que tive de actuar muito rápido, o stress do momento tomou conta das minhas acções, e nem pensei que a mãe estava bem acordada e a ver tudo o que se estava a passar.

Imaginem o que pensará uma mãe deitada numa mesa de operações, com metade do corpo imobilizado, com um lençol que a impede de ver a cirurgia propriamente dita, mas que, ao flectir o seu pescoço para a esquerda, vê durante escassos, mas provavelmente muito longos minutos, este homem, estranho, branco, vindo sabe-se lá de onde às tantas da madrugada dedicar tanto do seu esforço para que o seu filho nasça saudável nesta zona do planeta que parece ter sido esquecida pelo mundo. Dentro do azar, mãe e filho, tiveram a sorte de existir um hospital dos Médicos Sem Fronteiras, naquela zona de guerra aberta.

Quando já tenho a certeza de que o bebé está são e salvo, volto as minhas atenções para a mãe, e como a comunicação verbal era impossível (por eu não falar suaíli) tenho que utilizar outra forma de comunicar com os pacientes, e então passo a minha mão pela testa e pelo cabelo às trancinhas, acariciando-a, sorrindo e passando a mensagem com o meu sorriso de que estava tudo bem, e que o perigo estava longe do seu bebezinho.

Foi aí que ela me disse algumas palavras que eu não percebi. Esticou-me o braço, e eu continuei sem perceber. Até que um enfermeiro congolês, servindo de intérprete, me disse: “Ela quer apertar-lhe a mão, doutor!” E assim foi. Apertando-me a mão e olhando-me nos olhos com verdade e transparência, com um olhar negro e profundo, ela disse-me: “Asante sana!” (Muito obrigada).

Neste aperto de mão, eu senti um arrepio na espinha como se fosse um raio de felicidade a atravessar-me o corpo todo. Senti que todos os esforços valem a pena quando é por um bem maior. E senti que não há melhor fórmula para ser feliz, do que darmos o melhor de nós.

Hoje, sabemos que vamos enfrentar uma grave crise económica. Por favor, não deixem cair a humanidade, e lembrem-se que a melhor forma de ser feliz é a dar, seja ao longe ou ao perto. Dar de nós, do nosso tempo, do nosso dinheiro, do que tivermos para dar, faz muito bem a quem recebe, e faz-nos a nós extremamente felizes.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor da Médicos Sem Fronteiras.

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