Já só há espaço para o conformismo
É inquietante que se transforme a escola numa organização permanentemente à beira de um ataque de nervos e mergulhada na mediatização da falsa doença dos professores e da sua desautorização.
Na escola, já só há espaço para o conformismo. Fundamenta-se em três condições dos professores: “fuga” para quem tem outra saída profissional, ou só olha para o que falta para a aposentação; revolta contida para quem ainda tem anos de serviço a percorrer; e sobrevivência visível para quem se sujeita à avaliação injusta e kafkiana. Digamos que o conformismo é um quase totalitário que desvitaliza. A bem dizer, há muito que se sabe que é a elevação dos deveres de profissionalidade e de cidadania que coloca os alunos à margem da desesperança.
Mas se ser professor é um atributo único das democracias porque testemunha a esperança no futuro, é inquietante que se transforme a escola numa organização permanentemente à beira de um ataque de nervos e mergulhada na mediatização do intolerável da falsa doença dos professores e da sua desautorização. É preocupante, até porque o conformismo tem uma génese mais profunda.
Desde logo, no desinvestimento financeiro. É factual e dispensa a repetição do argumentário. Atravessa governos. Transmite um sinal de fim da história, com reflexos na indesmentível falta de professores e nas condições de realização do ensino. Aliás, o pânico com essa falta obriga à única inquietação educativa dos governos.
Além disso, quem não se recorda dos “3 c” (closed spaces-espaços fechados, crowded places-espaços com grande aglomeração de pessoas; e close-contact-ausência de distanciamento físico) em que as escolas incorriam na pandemia. Pois bem, é um universo inamovível. Passada a pandemia, voltaram as aglomerações nos acessos e interiores das escolas e não existe qualquer discussão que oxigene o presente e olhe para o futuro; nem sequer para a perda da ancestral sensatez pedagógica nos horários das turmas, dos professores e do funcionamento da organização.
Outro domínio do conformismo é explicado pela história universal dos últimos três milénios. As nações falham (Porque falham as nações, Daron Acemoglu e James Robinson), repita-se, pela incapacidade de consolidar, durante décadas, um modelo inclusivo transformador de políticas, instituições e empresas extractivas (que concentram a riqueza) em inclusivas (que distribuem a riqueza). Não foi, portanto, por causa da cultura, da geografia ou da ignorância que não houve crescimento económico, nem bons indicadores empresariais, culturais e escolares; e o excesso de alunos por turma, associado ao estreitamento curricular, foi o indicador escolar extractivo e tema tabu na discussão portuguesa.
Por outro lado, o aumento da escala da gestão escolar, com a criação de mega-agrupamentos disciplinados pelo poder central e assentes num modelo desacreditado e ligado à máquina, limitou gravemente a alternância e a dissonância consequente; até o processo de recrutamento de directores é redutor e empobrecedor. E como se previa, as direcções escolhidas por um colégio eleitoral - com representatividades pouco sustentadas - legitima incomparavelmente menos do que um caderno eleitoral que incluía todos os profissionais de educação e representantes dos encarregados de educação. Em resultado das mudanças impostas em 2009, reduziu-se a capacidade de inovar e cooperar e promoveu-se o conformismo e a inércia.
E se sempre foi inaceitável que as escolas se escudassem no centralismo para justificar o imobilismo, agora acrescentou-se o álibi dos municípios. Rarearam as lideranças que apontaram o caminho consistente aos diversos poderes, até na busca de investimentos do mundo empresarial que compensassem a austeridade do orçamento do estado. As escolas - que não são associações recreativas, e com todo o respeito por estas - não se podem circunscrever à animação conformada de projectos rápidos e fragmentados.
Acima de tudo, a escola emaranhou-se numa Babel tecida pela tecnocracia didáctica especializada na administração sofisticada de inutilidades e por correntes pedagógicas que secundarizaram o essencial da escola pública de qualidade: o intemporal - alunos, professores e conhecimentos -, com os terceiros como mediadores da tensão da relação pedagógica (professor-aluno). Agravou-se nos sistemas como o nosso. Não se antecipou, ao contrário dos sistemas sensatos (norte da Europa), a gestão escolar como “a escola” que sintetiza as Ciências da Educação com as da Gestão e Administração. Ou seja, a escola “enredou-se em radicalidades antagónicas" e excluiu os seus profissionais.
Até as vantagens do digital se diluíram no imobilismo. Foi quase tudo parar às mãos das gigantes tecnológicas e ao modo industrial que adicta os alunos e cria conteúdos massificados. Teme-se a perda do controlo da informação e das máquinas, que se agravará se o poder das segundas ocorrer no exercício de autocratas. O próprio Ministério da Educação está há quase vinte, e intermináveis, anos a programar um software integrado de gestão que assegure um maior controlo dos dados.
Mas o conformismo também se espelha em práticas impostas na primeira década do milénio: educação a tempo inteiro na escola - que excluiu as crianças e os jovens do espaço público e livre - e invasão das escolas pelo impensado e desqualificado “cliente tem sempre razão” associado às teses da criança-rei (esta desautorização educativa reflecte-se sempre negativamente em casa, na escola e na saúde da democracia).
Em suma, as democracias fragilizaram-se e receia-se o seu crepúsculo. O desinvestimento dos governos na educação, integrado num vasto programa neoliberal, provocou o crescimento dos extremismos e o aumento das desigualdades educativas e das escolas para ricos. Por cá, e onde se observam os mesmos desequilíbrios, é imperativo promover um ambiente educativo - democrático e inconformado - promotor do elevador social, do pensamento autónomo e do livre sentido crítico; e como em educação o exemplo é fundamental, urge contrariar o conformismo escolar.