A vitória laboral é também a vitória da Casa da Música

O reconhecimento de direitos laborais é também alavanca para esse urgente reencontro com a cidade do Porto e com os seus públicos.

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Casa da Música nelson garrido

A Casa da Música é um dos meus espaços de eleição da cidade do Porto. Alguns dos melhores espetáculos a que assisti foram na sala Suggia. Ainda assim, por alguma razão, temo-nos desencontrado. Talvez por gostar demasiado de rock. Talvez por a música erudita não estar no topo das minhas preferências. Mas outras razões haverá para me inquietar…

A gestão das questões laborais na Casa da Música tem vindo sobejamente a público, pelo menos desde o início da pandemia em Portugal, o que tem gerado desconforto em inúmeras referências do setor cultural em geral e da música em específico. Como no maestro Borges Coelho, que renunciou à administração da Casa de Música em 2021. Mas também nas 2400 pessoas que, com Mário Laginha, Manuela Azevedo ou Salvador Sobral, subscreveram o apelo por justiça laboral naquela instituição cultural, bem como na Sara Yasmine, André Gil Mata e Miguel Januário que criaram a canção e o vídeo de defesa dos direitos dos trabalhadores Abraço Assinado, com Manel Cruz, que em junho de 2020, já tinha afirmado, em face daquela realidade: “Nunca mais toco nesta Casa da Música”. E precisamos tanto da poesia e da música do Manel Cruz na Casa da Música.

A reivindicação da regularização de vínculos laborais tem sido ponto de charneira no debate sobre a missão deste espaço cultural tão importante para a cidade do Porto e para o país, sobre a incorporação de música não erudita na sua programação ou a atração de novos públicos. Debate que tem vindo também à liça pela voz de pessoas que, como Pedro Burmester, são a alma da Casa da Música e de um projeto de dinamização cultural que sempre se quis inovador, pioneiro e disruptivo.

No passado dia 10 de setembro, realizou-se, na Avenida dos Aliados, o usual concerto da Orquestra Sinfónica da Casa da Música que acontece no verão naquele espaço da cidade, aberto ao público e que junta normalmente milhares de pessoas. Na mesma data, os trabalhadores da Casa distribuíram um panfleto onde se lia “hoje podia haver greve”. O concerto realizou-se, claro. Os trabalhadores sabiam bem a importância da realização daquele evento, desde logo para as pessoas que assim têm a oportunidade de gratuitamente usufruir de um espetáculo de música normalmente só acessível para alguns. Só trabalhadores com elevado nível de compromisso, em lugar de uma greve, que é uma via de luta legítima e corresponde a um direito fundamental, optam por um protesto de natureza simbólica como foi este.

É neste contexto que importa assinalar de forma inequívoca as vitórias laborais dos trabalhadores da Casa da Música. Contrariamente ao recentemente propalado (de forma no mínimo inusitada, na sequência de uma denúncia sobre benefícios ilegais a privados no âmbito do mecenato e da contratação pública da Fundação Casa da Música, cuja ligação à luta dos trabalhadores tenho dificuldade em perceber) e mesmo tendo em conta decisões judiciais que permanecem ancoradas em padrões tradicionais de subordinação jurídica não consentâneos com a especificidade da prestação laboral neste setor de atividade, houve, sim, e importa reiterar, vitórias laborais dignas de registo.

Entre agosto de 2020 e março de 2021, a Administração da Casa da Música, antecipando um resultado desfavorável em tribunal, fez o que é comum no âmbito de processos judiciais desta natureza: reconheceu os vínculos laborais de duas dezenas de trabalhadores antes do julgamento. Fez bem. Não faria sentido aumentar custos e prolongar o desgaste das partes quando era evidente a situação irregular. Fê-lo também temendo o dano reputacional. Compreende-se que esta colagem à precariedade não seja desejável. Mas foi porque os trabalhadores levaram a Fundação da Casa da Música a juízo que foi possível fazer os acordos que se traduziram no referido reconhecimento de vínculo.

Decorrido todo este tempo e tendo em conta que já se reconheceu, em relação a um conjunto significativo de trabalhadores, que não estava em causa uma prestação de serviços, mas verdadeiros vínculos laborais, o que se esperaria é que se passasse a adotar como prática a celebração de contratos de trabalho, mesmo que de curta duração, se e quando aplicável. O Estatuto dos Profissionais da Cultura (ainda que recentemente marcado por um recuo que, não obstante, é passível de ser revertido) surge com o objetivo justo de combater à precariedade no setor cultural e disponibiliza modalidades contratuais flexíveis que podem acautelar essas situações, modalidades essas que na sua maioria, em boa verdade, já existiam desde 2008. Ainda assim, quanto mais não seja este Estatuto teve a vantagem de estar associado à sensibilização e à formação quer das entidades empregadoras quer dos profissionais do setor.

É possível fazer de outra forma. E a Casa da Música precisa de fazer de outra forma. O reconhecimento de direitos laborais é também alavanca para esse urgente reencontro com a cidade e com os seus públicos. Até lá, nestes desencontros com a Casa da Música, vou-me perguntando como está: “E o vento não me diz nada/Ninguém diz nada de novo”.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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