Vai ficar tudo bem?

Ainda que já então tivesse atrás de si quase três décadas como deputado federal, em 2018, Bolsonaro emergiu de forma súbita da quase completa obscuridade.

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Brasil em campanha Ricardo Moraes

“I have seen the future, brother/ It is murder”

Leonard Cohen, The Future, 1992

Nos primeiros meses da pandemia de covid-19, apareceram por todos os lados, de maneira mais ou menos espontânea, cartazes de fabrico artesanal com uma representação do arco-íris e a frase tranquilizadora “Vai ficar tudo bem”. A experiência da pandemia não fazia parte do repertório de praticamente nenhuma pessoa viva em 2020 e desconhecia-se ainda quase tudo sobre a nova doença; de um ponto de vista lógico ou científico, dificilmente alguém poderia assegurar-nos de que tudo iria ficar bem. E o que seria “tudo”, de qualquer forma? “Vai ficar tudo bem”, com a sua estética marcadamente infantil, era uma frase dirigida às nossas necessidades mais básicas de conforto e não uma proposição que aspirasse a ter valor de verdade.

Tenho pensado muitas vezes nesse cartaz ao longo do último ano, à medida que se aproxima o dia decisivo da disputa eleitoral entre Lula e Bolsonaro. Os próprios hinos adoptados pelo campo progressista sugerem a urgência de que, como por milagre, tudo regresse ao que era antes. Nas semanas que antecederam a primeira volta, Apesar de você (1978), de Chico Buarque, reapareceu em força: “Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia” entoa o refrão, seguido por versos que imaginam a catarse no fim do pesadelo: “Eu pergunto a você/ Como vai se esconder/ Da enorme euforia.” De maneira similar, na véspera das eleições, Caetano Veloso publicou na sua conta de Instagram um vídeo cantando Amanhã (1977), de Guilherme Arantes: “Amanhã/ Será um lindo dia/ Da mais louca alegria/ Que se possa imaginar/ Amanhã/ Ódios aplacados, temores abrandados/ Será pleno, será pleno.” “Amanhã” é a palavra-chave em ambas as canções; e amanhã, é claro, “vai ficar tudo bem”.

Antes de ser política, a vitória de Lula na primeira volta teria representado um lavar de alma, permitindo ao Brasil dizer de forma clara que não se confundia com aquilo. Daí o sentimento altamente depressivo que experimentámos na noite do passado dia 2, quando não só essa expectativa não se verificou, mas se tornou além disso evidente que o resultado das eleições de hoje não seriam favas contadas. Acredito que a experiência foi particularmente difícil porque, à decepção natural perante um resultado que não foi o desejado, se acrescenta a nossa própria confusão: tratou-se em simultâneo de uma frustração de expectativas e de uma suspeita funda sobre o nosso próprio fracasso intelectual. É horrível, e não conseguimos entender.

Ainda que já então tivesse atrás de si quase três décadas como deputado federal, em 2018, Bolsonaro emergiu de forma súbita da quase completa obscuridade. O fenómeno podia ser explicado pelas circunstâncias excepcionais dos anos precedentes, em particular pela combinação explosiva de uma crise económica muito grave com a desmoralização transversal do sistema político, a partir das investigações da Lava-Jato. Essa conjugação produziu um vazio no coração do sistema político, cujos estilhaços atingiram não só o PT (seu principal alvo), mas também o PSDB, partido de direita moderada que rivalizara com o de Lula em todas as eleições desde 1994.

Era nessa medida plausível supor que Bolsonaro fosse um fenómeno transitório e circunscrito. É certo que os seus ecos históricos, as suas afinidades com a ditadura militar (1964-85) não podiam ser ignorados, nem assim os riscos que uma tal corrente, declaradamente apologista da violência e da repressão, representaria uma vez tendo chegado ao Palácio do Planalto. O que seria certamente mais difícil de imaginar era a situação em que nos encontramos hoje, em que, depois de quatro anos de retumbante incompetência no plano governativo (na economia, na resposta à pandemia, na própria articulação de um partido estável), Bolsonaro chegaria à segunda volta com possibilidades reais de ganhar. Não é já como novidade, mas com esse currículo governativo que Bolsonaro agora se apresenta; e aí é que está a charada.

Por demasiado tempo, temo-lo tratado não como fenómeno a ser entendido, mas — na melhor das hipóteses execrado. Quando confrontados com a amplitude da sua base eleitoral, apelamos para o obscurantismo, assinalando que ele se apoia em forças retrógradas (os famosos “evangélicos”), gente que não obedece à razão e com quem é por isso impossível conversar. Só que, remetendo o problema para motivos que estariam fora do alcance da lógica, a nossa explicação ela própria obscurece mais do que explica. Imaginar que os eleitores dezenas de milhões de pessoas agem desta forma simplesmente porque acreditam em coisas bizarras não é, no fim das contas, muito diferente de dizer que estão possuídas pelo demónio. Por um lado, a explicação remete para uma forma de pensamento supostamente anterior às Luzes; por outro, não procurando compreender o que vai na cabeça daqueles de quem fala, torna opaco o fenómeno que pretende elucidar.

De resto, a tendência para interpretar o bolsonarismo em função do irracionalismo religioso tem um claro recorte de classe: seriam os pobres, não só de dinheiro mas também de espírito, os alicerces deste movimento político. O voto em Bolsonaro seria afinal uma manifestação do primitivismo daqueles que coitados não têm meios para se educar. Mas a base social em que o Presidente brasileiro assenta é muito mais complexa do que isso combinando segmentos ricos, intermédios e pobres ou no limiar da pobreza , sendo que a tendência persistente a imaginar que o voto dos pobres é menos racional do que o das pessoas com posses não é mais do que uma manifestação de racismo de classe.

A ideologia que Bolsonaro corporiza é velha, sem dúvida, mas não é só por ser um fenómeno com raízes fundas na sociedade brasileira que o bolsonarismo se converteu numa força política poderosa e persistente: a sua potência deriva não só daquilo em que ele é arcaico, mas do que nele é novo. O racismo, o machismo, a homofobia, a prepotência do forte sobre o fraco tudo isso é real e faz explicitamente parte da sua plataforma desde o início. A questão está em ser capaz de aceitar tais elementos como reais, sem os ver como essências imutáveis, como resquícios do medievo ou como uma ideologia perene, fora do tempo. O que faz falta é compreender a adesão ao bolsonarismo nos seus próprios termos, como resposta lógica, em certo sentido adequada, às circunstâncias sociais e políticas do momento que vivemos.

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Pensámos que o discurso anti-sistema só poderia funcionar enquanto o candidato não fosse posto à prova, obrigado a governar. Mas Bolsonaro governa como antigoverno, revertendo a incompetência a seu favor. Em circunstâncias em que se espera muito pouco do Estado, o discurso anti-sistema, assente no esforço individual, na crença no transcendente, uma mistura de empreendedorismo e discurso de auto-ajuda com fundo religioso, tem um apelo muito significativo. Daí que a atitude do Presidente brasileiro perante a pandemia negando o problema, ridicularizando-o, defendendo a “liberdade” de que as pessoas continuassem a ir trabalhar não tenha horrorizado uma parte da população que, de qualquer forma, não encara o Estado como capaz de a proteger. A doença em si é um fenómeno natural, talvez um acto divino; perante a inevitabilidade, Bolsonaro defendeu a liberdade de cada um tentar ganhar o seu sustento. É este contraste entre, por um lado, a crença nas possibilidades de se salvar com base no esforço individual e na fé e, por outro, a completa descrença em mecanismos de organização colectiva que o transforma numa resposta apropriada aos nossos dias.

O bolsonarismo é uma ideologia para uma era de precarização do trabalho, de uberização, de “empreendedorismo”, com a concomitante desagregação das formas clássicas de organização dos mais fracos em sindicatos e em partidos. Para quem não acredita que o Governo seja capaz de fazer nada, o facto de o Governo não fazer nada não constitui surpresa. “O que a extrema-direita oferece é, em resumo, uma política anti-sistema para pessoas que não acreditam que o sistema possa de facto mudar”, como escreveu o filósofo Rodrigo Nunes no ano passado, em artigo para a revista Piauí. O que Bolsonaro propõe, no lugar do Governo, é discurso, combate, “engajamento”. Faz assim a quadratura do círculo, juntando as vantagens de ser situação (dispondo sem qualquer pudor dos recursos públicos para fins eleitorais) e oposição ao mesmo tempo; Lula, pelo contrário, representa todo o “sistema” que veio de trás e que não terminou muito bem.

O campo que se apresenta com Lula nesta segunda volta está muito longe de ser um projeto homogéneo: ele vai da esquerda à direita, como uma candidatura que em Portugal abarcasse desde o Bloco de Esquerda à maior parte da direita, com exclusão do Chega. Na última semana, surgiu um belo manifesto “Domingo a gente faz um país” , redigido por Antônio Prata, em que as presentes eleições são (correctamente) descritas como “um plebiscito entre obscurantismo e democracia”. Nele, enaltece-se o facto de que a esquerda e a direita que se digladiaram durante todo o período democrático estão, por uma vez, juntas, “no mesmo barco”. Mas o facto de uma candidatura reunir um leque de forças tão amplo mostra bem a gravidade do momento; e, se metade do eleitorado vota pelo obscurantismo, não é pequeno o problema que temos pela frente. É frágil, provisória, ilusória e ao mesmo tempo indispensável a plataforma democrática que temporariamente aceita ter Lula como líder.

O antigo presidente tem a vantagem de estar associado a um período histórico em que as coisas iam melhor. No entanto, quando se apresenta como símbolo da esperança (“o Brasil feliz de novo”), é impossível não notar que há um elemento recalcado: é que não é realmente possível ressuscitar o que já foi e as circunstâncias políticas e económicas em que o governo de Lula foi muito bem-sucedido já não existem. É como se o candidato tivesse passado uma maquilhagem, oferecendo-nos a possibilidade de não reparar nas rugas, permitindo-nos fingir que o tempo não passou nem para ele nem para nós. Se foi tão bom e descambou de forma tão súbita, radical, inesperada não podemos voltar ao que era antes?

No artigo a que acima me referi, Rodrigo Nunes sugere que “estamos em negação sobre o negacionismo”. O que Nunes faz é virar a acusação de negacionismo de cabeça para baixo, chamando-nos a reconhecer os limites da nossa própria tolerância ao real. Todos nós no plano existencial como no colectivo somos capazes de encarar a verdade da nossa condição só até certo ponto; todos precisamos de dizer a nós mesmos que “vai ficar tudo bem”, que o bolsonarismo é uma fase má, que os demagogos de extrema-direita acabarão por ser desmascarados e que tudo finalmente voltará ao normal. E se o normal tivesse deixado de existir? E se, mais do que mera manifestação anómala, mais do que uma condição de insanidade temporária, mais do que um exotismo tropical, Bolsonaro como Trump, como Meloni, como o Brexit, como Ventura fosse o sintoma real da nossa condição presente? E se o Brasil fosse o país do futuro, como lhe chamou Stefan Zweig se ele estivesse, não atrás de nós, mas à nossa frente numa imaginária linha do tempo? Não me refiro a qualquer Brasil, não digo todo o Brasil, não falo do Brasil que também existe (e que ao mesmo tempo nos habituámos a idealizar) mas deste Brasil, que se apresenta com a cara de Bolsonaro?

Se Lula ganhar hoje, esqueceremos por um momento estas perguntas e será um alívio mas elas hão-de voltar. Se Bolsonaro vencer, procuraremos às cegas explicações que não explicam nada e daqui por três dias estaremos a olhar para outro lado. “Não é nada comigo, não é nada comigo”, repetia José Mário Branco no FMI.

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