O estado invisível da saúde mental

No Dia Mundial da Saúde Mental, que se assinala a 10 de outubro, devemos evitar as visões moralistas. Porque a doença mental abala a estrutura da nossa existência e é vital a avaliação e a intervenção de um especialista em psiquiatria e psicologia.

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"As conceções sobre o adoecer surgem-nos, muitas vezes, dos nossos momentos de tristeza, ansiedade e desordem" Paulo Pimenta/Arquivo

Quando estamos saudáveis, permanecemos envolvidos, imersos no mundo, com os outros seres humanos, capazes de aceder às gratificantes tarefas diárias. Esta condição de invisibilidade dos nossos pensamentos, do nosso corpo, do tempo que decorre e do espaço que percorremos, é um privilégio que, pela sua natureza de ser imperceptível, raramente valorizamos em toda a sua extensão.

De facto, a saúde não é uma condição que a pessoa sente introspectivamente. É apenas quando adoecemos que tomamos consciência da nossa existência física — de que habitamos um corpo material e que este não é apenas um modo de acesso ao mundo. Exemplos do nosso dia-a-dia em que o corpo se torna aparente são os estados gripais onde este resiste à nossa vontade de nos levantarmos da cama, bem como a súbita e inexorável consciência do tempo que nunca mais passa em momentos de aflição ou no tédio.

O adoecer mental é particularmente duro nestas transformações. Traz consigo tal alteração da relação com o mundo que, como se de um boneco de corda nos tratássemos, manifestam-se ou desorganizam-se os fios, habitualmente invisíveis, que nos unem à vida real. Por exemplo, num episódio depressivo, o espaço que percorremos entre a sala e o quarto pode parecer-nos maior, podemos sentir-nos apartados dos outros como se uma distância inultrapassável se impusesse — e mesmo os nossos objetos diários passam a dizer-nos menos respeito.

Assim, a solidão na depressão não é uma experiência semelhante à da tristeza ou à da migração para um país distante, mas antes uma transformação implacável e inescapável da união do sujeito que adoece.

O corpo fica mais pesado e tangível com várias das suas funções fisiológicas ocultas, agora claras e assustadoras, como o bater do coração ou os movimentos do intestino. Igualmente, o tempo também se torna visível como se os minutos do relógio marcassem o seu curso inexorável, não mais sendo possível qualquer distração e onde somos forçados a ruminar.

Habitualmente, ruminamos sobre o passado, já que as memórias, em particular as negativas, perdem aqui o seu lugar enterrado, tornando-se as únicas vivências possíveis — e que não podem mais ser transformadas, já que parece que não há mais futuro. A alteração do futuro constitui, na depressão, o desespero, que não é mais do que a “horizontalização” do futuro, este não mais é vivido como espraiado, sequencial e possível de realizar, mas antes um acumulado de ocorrências simultâneas impossíveis de cumprir.

As conceções sobre o adoecer surgem-nos, muitas vezes, dos nossos momentos de tristeza, ansiedade e desordem — e pareceriam ajudar-nos a demonstrar empatia com aqueles que adoeceram. Porém, são também a base de visões moralistas sobre a doença mental quer para o próprio (“basta força para sair da depressão”) quer para os outros (“há os fracos e aqueles que são fortes — ele é um fraco”).

Como vimos acima, tal é inadequado e até injusto, já que a doença mental abala a própria estrutura da nossa existência e é vital acedermos ou ajudarmos a aceder, o mais depressa possível, a uma avaliação e intervenção em psiquiatria e psicologia.

Podemos devolver assim a cada pessoa a imaterialidade do seu corpo, para se relacionar com os outros e de se mover no aqui e no agora do seu real, apartando-se do seu passado e do seu futuro. E, apesar de ser difícil reconhecer o que não sentimos, faríamos talvez melhor em admirar esta condição de invisibilidade que a saúde nos oferece dentro do equilíbrio instável e sempre transitório da nossa existência.

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