Um Nobel para reflectir

Os laureados deste ano fizeram-nos entrar numa nova fase cujas consequências ainda estão longe de ser conhecidas: a representação de informação ao nível quântico. É possível codificar informação de tal forma que a sua segurança última é garantida pelas leis da mecânica quântica.

A noção de quanta introduzida em 1900 por Max Planck representou muito mais do que uma explicação para o estranho comportamento da interacção da luz com a matéria que se vinha observando na altura: na verdade, representa uma mudança estrutural na forma como compreendemos o próprio Universo e como com ele interagimos. As duas décadas iniciais do século XX, com as contribuições seminais de Einstein, Bohr, De Broglie, Heisenberg, Born e Dirac, mostraram-nos que a natureza à escala atómica ou inferior se comporta de forma muito diferente da que conhecemos na vida de todos os dias. A essas escalas a natureza adopta um comportamento aleatório, restando-nos como cientistas apenas a possibilidade de prever a probabilidade de um dado acontecimento ter lugar. A realidade determinista clássica de Galileu e Newton cede o lugar a uma nova realidade em que o aleatório ocupa o lugar central.

Como se vê isso na prática? Imaginemos uma experiência clássica em que partículas (à escala atómica) são enviadas uma a uma contra um ecrã onde se rasgaram duas estreitas fendas. Essas partículas passam pelas fendas e vão embater contra um alvo que se encontra atrás do ecrã. O que vemos então é inicialmente aparecerem aleatoriamente pontos onde cada partícula enviada embate no alvo.

À medida que prosseguimos a experiência reparamos que as partículas têm, na verdade, zonas preferenciais para chegar ao alvo e que essas zonas são mais do que as duas zonas correspondentes às fendas que seriam de esperar classicamente. Desta experiência aprendemos duas coisas: por um lado, que as partículas não se comportam estritamente como grãos de pó, mas que têm também um carácter ondulatório associado (daí as várias regiões características de fenómenos de interferência); por outro lado, que não podemos prever de forma inequívoca a trajectória de cada partícula, apenas nos sendo permitido prever a probabilidade de a partícula chegar a uma das zonas no alvo. Esta é a essência da mecânica quântica.

Poderíamos pensar que esse carácter estritamente probabilístico que presenciámos à escala atómica seria resultado de uma realidade determinista mais profunda que não conseguimos observar e que, se conhecida, eliminaria a incerteza no comportamento das partículas. Existiriam assim quantidades escondidas que, por nos serem desconhecidas, nos imporiam a aleatoriedade do resultado.

Esta discussão opôs radicalmente Louis de Broglie e Einstein por um lado e Bohr e Heisenberg por outro e resume-se simplesmente a isto: à escala atómica ou subatómica é a natureza intrinsecamente aleatória, ou essa aleatoriedade resulta da nossa ignorância sobre uma outra natureza mais profunda? A discussão continuou até sensivelmente metade do século XX sem grande pendor para qualquer dos lados em disputa, até que na década de 60 o físico John Bell da divisão teórica do CERN, o maior laboratório mundial de física das partículas, descobriu como destrinçar a questão.

O que John Bell descobriu é que num processo quântico, se a realidade fosse intrinsecamente aleatória (como é assumido na mecânica quântica), os resultados de experiências fornecendo resultados binários, ou seja, tipicamente +1 ou -1, deveriam estar relacionados entre si de uma determinada forma, enquanto se existisse uma realidade subjacente não observada esses resultados deveriam estar relacionados de outro modo.

É aqui que entram os laureados do Nobel deste ano. Com experiências extremamente delicadas e precisas usando lasers conseguiram demonstrar que, na verdade, a natureza é intrinsecamente probabilística. Mais: conseguiram demonstrar que existe correlação (ou emparelhamento) entre fotões (ou quanta de luz) separados entre si eventualmente por centenas de quilómetros de distância. O que mostraram é que, definitivamente, o mundo é intrinsecamente diferente quando entramos na escala do átomo.

A mecânica quântica está na base da revolução tecnológica que atravessamos. Vivemos desde há várias décadas com equipamentos cujo comportamento depende das propriedades quânticas da matéria, sendo os lasers ou os semicondutores que compõem os actuais circuitos electrónicos a face mais visível dessa revolução. Mas os laureados deste ano fizeram-nos entrar resolutamente numa nova fase cujas consequências ainda estão longe de ser conhecidas: a representação de informação ao nível quântico.

Quando dois fotões estão correlacionados entre si a grandes distâncias, isso significa de facto que informação está a ser transmitida a essas distâncias através das leis da física que controlam o comportamento desses fotões. Mais: é possível codificar essa informação de tal forma que a sua segurança última é garantida pelas leis da mecânica quântica. Essa forma de transmissão de informação é inviolável.

Por outro lado, essa informação, devido à sua natureza quântica, deixa de ser transmitida em bits (os actuais componentes básicos de informação que só podem tomar o valor verdadeiro ou falso, 0 ou 1), para passar a ser codificada em qubits que podem tomar simultaneamente o valor 0 e 1. Existe, portanto, todo um novo mundo de física da informação que começa agora a ser explorado devido ao trabalho dos laureados Nobel deste ano.

Sendo uma tecnologia embrionária e de grande potencial, a nova física da informação quântica representa uma oportunidade para países como Portugal. E de facto esse processo começou bem, por exemplo com uma demonstração de transmissão encriptada quanticamente realizada no Instituto Superior Técnico em 2019 e apresentada no Encontro Nacional de Ciência desse ano. Mais recentemente, Lisboa e Almada foram ligadas por uma conexão encriptada quanticamente num projecto liderado por duas empresas de tecnologia e telecomunicações, a Warpcom e ID Quantique, usando a infra-estrutura de fibra óptica da IP Telecom. As tecnologias quânticas de informação são, na verdade, tecnologias de garante de soberania e devem por isso constituir um dos pilares de soberania do país.

O grupo de física da informação do Instituto Superior Técnico está presentemente assente em dois centros de investigação, o Centro de Física e Engenharia de Materiais Avançados (CeFEMA) e o Instituto de Telecomunicações (IT). O recém-criado Laboratório Associado de Materiais e Tecnologias Emergentes (LaPMET), consórcio composto pelo CeFEMA, pelo Instituto de Física de Materiais Avançados, Nanotecnologia e Fotónica (IFIMUP) e pelo Centro de Física da Universidade do Porto e Universidade do Minho (CF-UM-UP), está neste momento a consolidar a sua actividade neste domínio. O Instituto Português Quântico, que envolve parceiros públicos e privados como a Deloitte Portugal, é neste momento uma realidade.

O grupo de física da informação do Instituto Superior Técnico lidera a nível europeu várias iniciativas nesta área, nomeadamente no que toca à Internet quântica e as aplicações da computação quântica à ciência de dados em física das altas energias, neste último caso envolvendo uma parceria estratégica com o CERN.

É absolutamente crucial que Portugal não perca a liderança que tem neste momento na área das tecnologias quânticas. O Nobel deste ano deve por isso ser motivo de reflexão para a definição da estratégia de desenvolvimento científico e tecnológico do país. De outra forma poderá ficar dependente de outrem para garantir a sua própria segurança, com as consequências que daí possam advir para o garante da soberania nacional.

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