Brasil vai a votos com o ambiente a precisar de atenção

Negacionismo científico, destruição da Amazónia e guerras contra povos indígenas marcam o mandato de Bolsonaro. Lula, o favorito nas eleições deste domingo, tem um programa eleitoral vago, mas conta com o apoio da ambientalista Marina Silva. Caso seja eleito e volte ao cargo que já ocupou, será o homem certo para salvar a biodiversidade brasileira?

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Desmatamento da Amazónia perto de Porto Velho, capital do estado brasileiro de Rondónia Ueslei Marcelino/Reuters

O Brasil vai às urnas num momento de grande debilidade para a floresta da Amazónia, que durante o Governo Bolsonaro perdeu muita área — o resultado de um desmatamento que quebrou recordes e contribuiu para uma subida nas emissões de gases com efeito de estufa (GEE). As sondagens dão Lula da Silva como o grande favorito a vencer as eleições presidenciais deste domingo, sendo que as percentagens mais recentes mostram que as hipóteses de ser eleito logo à primeira volta subiram. Será que o candidato ao cargo que já ocupou entre 2003 e 2010 tem as propostas e soluções para enfrentar os desafios ambientais do Brasil? Neste momento, é algo difícil encontrar uma resposta, até porque as directrizes do seu programa eleitoral são “bastante genéricas”.

É a opinião de especialistas como Claudio Angelo, jornalista, autor do livro A Espiral da Morte: Como a Humanidade Alterou a Máquina do Clima e, ainda, director de comunicação do Observatório do Clima, uma rede de várias organizações da sociedade civil brasileira que foi fundada em 2002 para discutir o impacto das alterações climáticas no contexto brasileiro. “Não é só o Lula. Nenhum dos candidatos com mais intenções de voto [são eles Lula da Silva, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes e Simone Tebet] apresentou um plano de governo com um detalhamento satisfatório de políticas públicas e propostas”, comenta.​

Aquilo que, na óptica de Claudio Angelo, é interessante sobre o programa eleitoral de Lula é que a defesa do clima não surge meramente como “um assunto que ocupa uma caixinha no documento”. “Por norma, cada assunto nos planos de governo tem a sua caixinha: ‘economia’, ‘educação’, ‘segurança’, ‘meio ambiente’... O Lula muda essa lógica, ele coloca o ambiente junto com a economia.” Por outras palavras, a “promoção da agenda climática” passa a ir “para o centro” daquele que é o planeamento económico do país.

Claudio Angelo reconhece que “estamos a falar de cenários idealizados”. “Uma coisa é aquilo que está escrito no plano de governo, outra coisa é aquilo que você realmente faz depois que assume o poder. Mas a mera sinalização de que o clima não é mais visto como um assunto de nicho dentro de um plano de governo é muito importante. Isso nunca tinha acontecido na história do Brasil.”

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As sondagens dão Lula da Silva como o favorito a vencer as eleições — e é possível que seja eleito logo à primeira volta ANTONIO LACERDA/Lusa

Combater o desmatamento e ajudar os pequenos agricultores

No seu plano de governo, Lula promete “combater o uso predatório dos recursos naturais” e o desmatamento da Amazónia, “fortalecendo” o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), conjunto de organismos públicos responsáveis pela protecção do equilíbrio ecológico no Brasil, e a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão federal que se ocupa da demarcação das terras indígenas e da defesa dos seus direitos. “É imperativo defender a Amazónia da política de devastação posta em prática pelo actual governo”, frisa no programa eleitoral.

Defensor de uma “reforma agrária e agro-ecológica” que possibilite a “construção de sistemas alimentares sustentáveis”, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) também refere pretender ampliar as “políticas de apoio aos pequenos agricultores e à agricultura orgânica”. Lula diz que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-pecuária (Embrapa) será “fortalecida para identificar potencialidades dos agricultores e assegurar mais avanços tecnológicos no campo, essenciais para [garantir] a competitividade e sustentabilidade” de pequenos e grandes produtores.

Sublinhando a vontade de “promover o engajamento da indústria na transição tecnológica, ambiental e social”, o líder nas sondagens compromete-se a “cumprir as metas de redução” de emissões de GEE que o Brasil assumiu em 2015, quando, durante a COP21, foi negociado o Acordo de Paris.

Relativamente ao facto de o Brasil ser “um grande produtor mineral”, o “petista” assinala que, por um lado, “o padrão de regulação minerária deve ser aperfeiçoado” e, por outro, “a mineração ilegal, particularmente na Amazónia, será duramente combatida”.

Lula diz ainda que é preciso criar “um vigoroso programa de investimentos públicos” para modernizar e ampliar a rede de infra-estruturas de transporte do país.

O apoio de um rosto familiar: Marina Silva

Estas directrizes são, como Claudio Angelo diz, “bastante genéricas”, mas o próprio director de comunicação do Observatório do Clima lembra que, na primeira quinzena deste mês, aconteceu uma coisa que deu, no bom sentido, “uma chacoalhada” na campanha de Lula: Marina Silva, ambientalista distinguida internacionalmente pela sua defesa da Amazónia, declarou publicamente o seu apoio ao ex-presidente e, agora, possível sucessor de Bolsonaro.

A ecologista é uma figura importante na história do Governo Lula, tendo sido ministra do Meio Ambiente entre 2003 e 2008. A sua luta pela conservação da floresta amazónica foi sempre a sua grande bandeira, mas Marina apresentou a sua carta de demissão em Maio de 2008, citando “resistências”, “de sectores importantes do governo e da sociedade”, que estariam a fazer com que não conseguisse “dar prosseguimento à agenda ambiental federal”.

Depois de se distanciar politicamente de Lula e do PT, Marina candidatou-se à Presidência três vezes, em 2010, 2014 e 2018. Em 2014, acusou o PT, então encabeçado por Dilma Rousseff (que viria a vencer as eleições), e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), então representado por Aécio Neves, de montarem uma campanha “desleal” contra si, recorrendo à “difamação” para desconstruir não só o seu projecto político como a sua pessoa. Marina Silva, uma “petista” histórica, estava irreparavelmente desentendida com o Partido dos Trabalhadores.

Foi o que na altura se pensou. Mas este ano deu-se a reconciliação. Sobretudo por causa de um homem: Jair Bolsonaro. Marina deixou claro que o “reencontro político e programático” que agora está a viver com Lula tem como objectivo maior derrotar “a semente do mal que o bolsonarismo implantou na sociedade”.

“A Marina Silva anunciou o seu apoio sob uma condição. Ela entregou ao Lula um conjunto de propostas para uma agenda ambiental e falou assim: ‘Olha, eu te apoio se você adoptar isso aqui.’ E ele adoptou. Automaticamente, o Lula passou a ter a candidatura com as propostas mais avançadas para o ambiente. De longe”, comenta Claudio Angelo.

A importância de criar uma “autoridade nacional de segurança climática”

A agenda de Marina inclui aquilo que o director de comunicação do Observatório do Clima descreve como “coisas óbvias, que todo mundo sabe que é preciso fazer”. Por exemplo: “recompor e ampliar os quadros técnicos e orçamentos” de vários organismos públicos relacionados com a conservação da biodiversidade e/ou a fiscalização do desmatamento da Amazónia e do Cerrado (o segundo maior bioma brasileiro), como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Ainda sobre a Amazónia, claramente o dossier mais relevante naquilo que diz respeito aos actuais desafios ambientais do Brasil, Marina Silva pede não só a “conclusão da demarcação das terras indígenas”, mas também o “uso sustentável e regenerativo de áreas já desmatadas”.​

A ambientalista também defende, entre outras coisas, uma “transição para a agricultura de baixo carbono”, a elaboração de um “programa nacional de segurança hídrica”, que contemple incentivos ao aproveitamento de águas pluviais e à redução do desperdício, e a criação de uma “autoridade nacional de segurança climática”, que se encarregue de verificar a implementação de acções que coloquem um travão às emissões de GEE e aumentem a resiliência do país nos seus esforços de adaptação às alterações climáticas.

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Lula da Silva e Marina Silva num momento da campanha eleitoral de Lula Fernando Bizerra/Lusa

“O Lula é um cara que gosta muito de petróleo”

O facto de Lula ter aderido às propostas de Marina Silva para um Brasil mais sustentável é um ponto positivo, mas Claudio Angelo é da opinião de que isso, por si só, não faz dele um ambientalista “perfeito”. “Há muitas coisas com as quais ele ainda não se comprometeu”, refere, salientando, por exemplo, que o “petista” não tem dito que tenciona “acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis”. “O Lula, como se sabe, é um cara que gosta muito de petróleo.”

O líder nas sondagens assume no seu programa eleitoral que quer ver o Brasil com mais refinarias, mas isso até faz sentido, diz Claudio Angelo. “Hoje, somos um grande produtor de petróleo, um grande exportador de petróleo e um importador de combustível. Não faz sentido exportarmos petróleo cru e depois termos de andar a importar gasolina porque não temos refinarias em número suficiente para dar conta da demanda”, explica.

O grande problema, entende o especialista em matéria climática, está então não nas refinarias, mas no facto de Lula querer explorar a camada pré-sal (uma reserva de petróleo localizada no subsolo, sob uma espessa camada de sal). “O Lula já disse várias vezes, inclusive nesta campanha, que o pré-sal é um passaporte para o futuro e que o Brasil vai fazer igual à Noruega, no sentido em que vai usar o dinheiro do petróleo para investir num monte de coisas, desde a educação à própria transição energética.”

“Lembra-se dos protestos contra a guerra no Iraque? Os americanos empunhavam cartazes que diziam: ‘Lutar pela paz é como transar pela virgindade.’ A comparação é meio frouxa, mas aquilo que o Lula está propondo é um pouco isso: ele quer extrair combustíveis fósseis para financiar a nossa transição para fora dos combustíveis fósseis. O que até poderia fazer sentido na Noruega há 50 anos, mas não faz sentido nos dias de hoje, em que o resto do mundo está, pelo menos em teoria, a tentar caminhar rumo à descarbonização”, comenta Claudio Angelo.

“Se hoje a gente começa a investir numa extracção maciça de petróleo no pré-sal, daqui a 30 anos não vamos ter para quem vender esse petróleo. Isto não é difícil de entender: se o mundo estiver falando sério sobre combater a mudança do clima, em breve teremos um pico de demanda por petróleo [seguidod e uma quebra]. E os países que se comprometerem muito com a extracção de petróleo vão ter activos encalhados”, frisa.

Claudio Angelo considera que, se as sondagens estiverem certas e Lula suceder a Bolsonaro, “essa vai ser uma luta que a sociedade civil vai ter de travar contra o governo do PT”. “A gente vai ter que fazer o Lula entender que a era do petróleo acabou. Vamos ficar com todas essas reservas do pré-sal sem poder explorar? Mala suerte.”

“É como se o Brasil tivesse retrocedido 30 casas num jogo de tabuleiro”

O dossier “energia” é delicado no Brasil também por causa da questão do carvão. No início deste ano, Bolsonaro aprovou uma lei que prolonga até 2040 a compra de energia produzida em três centrais a carvão num complexo termoeléctrico no estado de Santa Catarina. Ora, esse é o ano em que, pelo menos idealmente, muitas nações estarão, segundo os seus compromissos internacionais, a acabar de vez com o recurso ao carvão. “A gente vai estar numa trajectória inversa à dos outros países”, lamenta Claudio Angelo.

O director de comunicação do Observatório do Clima, que, como muitos, é um crítico feroz daquele que foi o desempenho de Bolsonaro na área do ambiente, diz que há muitas coisas nesta área que têm de ser corrigidas — e avisa que, enquanto algumas, como a fiscalização do desmatamento, podem ser atacadas prontamente, outras requererão tempo, mais do que um mandato. “É como se o Brasil tivesse retrocedido 30 casas num jogo de tabuleiro. Agora, precisa correr para regressar ao mesmo lugar onde estava em 2010, 2012. É triste.”