Representantes dos trabalhadores da Cultura surpreendidos com aprovação de alteração a estatuto

Decreto-lei foi aprovado em Conselho de Ministros. Estruturas representativas dos trabalhadores da Cultura dizem desconhecer o teor das alterações e salientam que tutela não reuniu com a Comissão de Acompanhamento do Estatuto.

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O novo regime contributivo e fiscal criado para a cultura entrou em vigor no início deste ano DANIEL ROCHA

Duas entidades e o sindicato que representam os trabalhadores da Cultura manifestaram-se esta sexta-feira surpreendidos pela aprovação de um decreto-lei que altera o Estatuto dos profissionais do sector e pela marcação, posterior, da primeira reunião da comissão de acompanhamento.

O Governo aprovou, na quinta-feira em Conselho de Ministros, um decreto-lei - promulgado já esta sexta-feira pelo Presidente da República - que altera o Estatuto dos Profissionais da Cultura, “no sentido de simplificar e tornar mais proporcional o seu funcionamento”, sem mais detalhes e sem tornar o documento disponível.

À agência Lusa, fonte oficial do Ministério da Cultura apenas explicou que o decreto-lei aprovado “compreende alterações cirúrgicas e pontuais que pretendem agilizar e desburocratizar alguns procedimentos previstos no mesmo, designadamente para agilizar a comunicação dos contratos de prestação de serviços”.

Contactadas pela agência Lusa, três estruturas representativas dos trabalhadores da Cultura mostraram-se surpreendidas pela aprovação do decreto-lei e disseram desconhecer o teor do documento, tendo tido acesso apenas a uma proposta, enviada no início de Setembro pelo Ministério da Cultura, solicitando-lhes um parecer.

O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, “propôs esta alteração do estatuto, sem reunir a comissão [de acompanhamento], sem nunca estabelecer nenhum diálogo, desde que é ministro, sobre este assunto. Dá-nos dez dias para fazer um parecer. Esta alteração não é inócua. Não conseguimos perceber porquê esta alteração e porque não outras”, afirmou à Lusa Amarílis Felizes, da Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénicas.

Também Maria João Garcia, da REDE - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, explicou que “estranharam” a ausência de qualquer reunião da comissão de acompanhamento do estatuto, tendo sido “surpreendidos” com a aprovação do decreto-lei e com a publicação em Diário da República de uma portaria que altera o sistema de emissão de facturas, recibos e facturas-recibo da Autoridade Tributária, no contexto do Estatuto dos Profissionais da Cultura.

“É muito estranho que as entidades recebam isto sem a comissão ser reunida primeiro”, declarou Maria João Garcia, que lamentou que haja “um diálogo que não estará a correr da melhor forma”, disse.

Sobre o documento com alterações ao estatuto, enviado no início de Setembro pelo Ministério da Cultura, a REDE, a Plateia, assim como a Acção Cooperativista, a Acesso Cultura, a Associação Portuguesa de Realizadores, a Performart e o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, de Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE) assinaram um parecer conjunto, ao qual a Lusa teve acesso, apelando a Pedro Adão e Silva para que convocasse “com a máxima urgência” a Comissão de Acompanhamento do Estatuto, “sede própria para a reflexão e discussão da implementação da legislação e de eventuais alterações”.

Segundo a legislação, a comissão de acompanhamento da implementação do estatuto conta com a participação “das associações representativas e sindicais do sector da cultura”, e deve reunir-se, no mínimo, a cada trimestre.

O estatuto entrou em vigor a 1 de Janeiro e aquela comissão ainda não teve qualquer reunião. Esta sexta-feira, as entidades representativas foram informadas pelo Ministério da Cultura de que a primeira reunião da comissão acontecerá a 12 de Outubro, disse Amarílis Felizes à Lusa. “Esperamos que não seja o simulacro de uma conversa”, disse.

Segundo os representantes, a principal alteração proposta para o estatuto dizia respeito às entidades contratantes dos trabalhadores. “Pelo que nós sabemos, [o decreto-lei] altera a presunção e a obrigação das entidades contratantes a demonstrar que o trabalhador a quem são pedidos serviços é de facto um recibo verde ou não. Deixa de ser uma preocupação. [...] Agora a responsabilização da Segurança Social fica do lado de quem o patrão quiser. Isto é o caminho directo para o fim da utilidade do estatuto”, afirmou à Lusa Rui Galveias, do Cena-STE. “Não é nenhum pormenor. Era o único instrumento do estatuto que visava combater os falsos recibos verdes, que é uma das principais razões de precariedade e da falta de protecção social do sector”, sublinhou Amarílis Felizes.

A confirmar-se, porque desconhece o teor final do que foi aprovado, a dirigente da Plateia lamenta que o Governo esteja a “agir para responder a interesses de sectores minoritários dentro da área da Cultura”, nomeadamente “os grandes festivais e outro tipo de estruturas deste género”.

“É o fim da única coisa boa que o estatuto tinha, que ajudava a tentar mudar alguma coisa. [O ministro da Cultura] respondeu a um apelo dos patrões do sector, que pediam para não terem de ser eles a demonstrar se um trabalhador deve ou não ser recibo verde. Transformou o estatuto num objecto inerte”, afirmou Rui Galveias.

Em Maio passado, numa audição parlamentar, a propósito do Orçamento do Estado para 2022, Pedro Adão e Silva admitiu que havia procedimentos no estatuto que podiam ser melhorados a tempo da entrada em vigor da fase de protecção social, em Julho.

“Há um caminho a fazer, nomeadamente de simplificação de procedimentos. É possível simplificar procedimentos das empresas” até Julho, altura em que entra em vigor a legislação sobre protecção social, e até Outubro, quando os beneficiários podem começar a receber apoios sociais, disse.

Em matéria de combate à precariedade, Pedro Adão e Silva admitiu que não era possível “ter como ambição acabar com todos os vínculos precários da Cultura”.

“Acho que não é desejável, do ponto de vista de muitos trabalhadores da Cultura. Tenho muita dificuldade em perceber isso. Há profissões que, pela sua natureza, têm de manter esta possibilidade de ter vínculos precários. A precariedade, em muitas situações, não é um mal absoluto, mas devemos concentrar-nos em corrigir e contrariar a precariedade que efetivamente é um problema”, afirmou.

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