Marlene Vieira: “O medo empurra-me para a frente”

Depois do primeiro volume de Chefs Sem Reservas, Nelson Marques está de regresso com uma segunda dose de confissões, erros e lições de 12 grandes nomes da gastronomia portuguesa e internacional. A Fugas publica, em primeira mão, uma versão editada de uma dessas conversas intimistas, com a chef Marlene Vieira.

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Marlene Vieira Matilde Fieschi

É uma mulher do Norte (n. 1980, na Maia), que saliva só de pensar num arroz de cabidela, mas que apostou sempre em dar novas fronteiras à cozinha portuguesa. É também um caso raro de sucesso no feminino num meio ainda demasiado dominado por homens, vivendo hoje dias felizes depois de uma montanha russa de conquistas e desilusões: ganhou popularidade como jurada da última edição do concurso Masterchef, na RTP, e abriu este ano o restaurante dos seus sonhos, no Terminal de Cruzeiros de Lisboa. Foi lá, numa sala ainda despida, algumas semanas antes da abertura do Marlene, que conversámos sem pressa sobre um percurso que, se justiça lhe for feita, a levará à estrela Michelin que o seu talento já merece.

Nasceu na Maia.
Nasci na casa onde fui criada até aos 12 anos, em Nogueira da Maia, uma pequena freguesia ao lado de Silva Escura, a aldeia onde a minha avó vivia. A minha mãe estava a fazer o almoço e nem deu tempo para chamar uma parteira ou um médico. Saí simplesmente.

Que memórias tem desse tempo?
Eu e os meus irmãos tenho dois irmãos e duas irmãs passávamos o dia todo com a minha avó enquanto os nossos pais trabalhavam. Lembro-me de irmos com ela para a mata buscar lenha e pinhas para o fogão. Comíamos amoras pelo caminho e a minha avó apanhava cogumelos, mas nunca deixava ninguém tocar-lhes, porque só ela sabia distingui-los. Quase tudo o que comíamos vinha do campo. Quando precisávamos de mercearia, o azeiteiro passava com a sua carrinha, e trazia massa, arroz, azeite… As farinhas, ia eu buscá-las ao moinho na minha bicicleta BMX vermelha. E também ia buscar a um lavrador o vinho de que a minha avó gostava. Era ela que cozinhava para toda a família.

Quais são os cheiros e os sabores da sua infância?
O cheiro que mais recordo é o cheiro a lenha queimada e dos enchidos que a minha avó pendurava na lareira. O meu pai trabalhava num matadouro, mas um dia decidiu abrir um talho e eu ajudava a minha avó a fumar os enchidos, porque era muito trabalho para ela. O que mais detestava era lavar as tripas no tanque da roupa, com vinagre e sal grosso, porque dava imensa comichão e o cheiro era horroroso, mas aprendi a fazer todo o tipo de enchidos e hoje fazem parte da minha história. No Zunzum, já fiz um prato com sangue de porco cozido, que era algo que eu ajudava a minha avó a fazer para a minha mãe depois vender. Só de falar até sinto o sabor na minha boca.

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"A minha história começa aos 12 anos quando passei a ir com o meu pai entregar carne a restaurantes" Manuel Manso

Quando é que sentiu o apelo da cozinha?
A minha história começa aos 12 anos quando passei a ir com o meu pai entregar carne a restaurantes e um deles, o Costa Brava, despertou a minha curiosidade. A chef era uma mulher de 22 ou 23 anos, que já fazia uma cozinha internacional, sem aquele lado rústico a que eu estava habituada. Pedi aos meus pais para me deixarem trabalhar lá durante as férias de Verão e eles aceitaram, pensando que desistiria em menos de uma semana, porque sabiam que era um mundo muito duro. Até aos 14, 15 anos, fiz tudo o que ninguém queria fazer, porque a chef tinha muito medo que eu me magoasse no fogão: limpava casas de banho, lavava louça, descascava batatas e cebolas… Quando acabaram as férias de Verão, aos fins-de-semana só queria voltar para o Costa Brava. Fiquei tão obcecada que passei a dormir num colchão no apartamento que os donos tinham por cima do restaurante. Quase que me esqueci da minha família.

Com 16 anos, foi estudar cozinha e pastelaria para a Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira.
Fiquei a viver numa pensão e aproveitava todas as oportunidades para ganhar algum dinheirinho para pagar o quarto e ajudar os meus pais: acompanhava os chefs da escola em serviços que eles faziam em quintas de eventos e participava em campeonatos de snooker, porque jogava muito bem. Comecei quando tinha seis anos, porque fugia da catequese e ia ter com o meu pai ao café. Foi ele que me ensinou a jogar.

Como era o ensino na escola de hotelaria?
Era quase militar. O chef vinha do exército e eram demasiado duros e cruéis connosco. Muita gente entrava ali com o sonho de ser cozinheiro e não aguentava. Sofri um bocado e estive quase a desistir quando só faltavam três meses para acabar. Um dia, saí da cozinha engasgada em nervos, sentei-me num banco de jardim e desabei a chorar. Tinham sido mais fortes do que o meu sonho, já não aguentava mais. Então, um dos formadores que me fez a vida negra, se calhar o pior de todos, sentou-se ao meu lado e convenceu-me a ficar. Acabei como melhor aluna do curso.

Qual foi o seu primeiro trabalho numa cozinha?
Depois do estágio, soube que ia abrir um hotel de charme no Forte de São João Baptista, em Vila do Conde, e que o chef do Ritz, o Jerónimo Ferreira, ia tomar conta da cozinha. O Ritz era o patamar que eu queria atingir, sempre ambicionei estar numa cozinha internacional com algum luxo. Fui à entrevista e fiquei, era a única mulher na cozinha. Um ano e meio depois, um dos cozinheiros, o Francisco Rosa, foi para Nova Iorque abrir um restaurante português, o Alfama, e convidou-me para ir com ele. Nunca tinha andado de avião e foi um impacto muito grande, porque estávamos no pós-11 de Setembro e o ambiente era pesado. No restaurante, descobri uma cozinha que não sabia fazer: com 20 anos nunca tinha provado sequer um bacalhau à Brás. Era cozinha portuguesa tradicional mas empratada de uma forma mais requintada, porque estávamos em Manhattan e só tínhamos vedetas a jantar. Foi a melhor coisa que me aconteceu, poder estar ali no centro do mundo. Adorei toda aquela liberdade.

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"Com 20 anos nunca tinha provado sequer um bacalhau à Brás" Manuel Manso

Quando é que assumiu pela primeira vez a liderança de uma cozinha?
Foi num resort de luxo em Torres Vedras, o Campo Real. Eu e o David Jesus alternávamos como subchefes, cada um fazia uma temporada, mas ao fim de uns meses o José Avillez chamou-o para o Tavares Rico e fiquei com a cozinha só para mim. Nesse dia, houve um cozinheiro francês que tirou o avental e me disse: «Nunca tive uma mulher chef e não vais ser a primeira.» Por dentro fiquei destruída, senti que aquele não era o meu lugar. Foi das coisas que me marcaram na vida.

Mais tarde, aterrou na Avenida da Liberdade, ao leme do Avenue.
O primeiro proprietário, Mário Cajada, queria que eu fizesse uma cozinha muito à base de petiscos e aceitei porque sabia que poderia dar o meu cunho. Criei vários pratos de que ainda hoje muitas pessoas se lembram, como os mini-hambúrgueres de pato em bolo do caco ou o camarão crocante. Ao fim de um tempo ele quis vender o Avenue porque a renda era altíssima e comecei a ver como podia salvar o restaurante, não queria que me cortassem as pernas. Foi nessa altura que apareceu o Aguinaldo Silva, que escreveu muitas das novelas de sucesso da Globo. Era nosso cliente e decidi escrever-lhe um email, propondo-lhe comprar o restaurante e mudar para um conceito mais à minha imagem, uma cozinha de base portuguesa mas requintada. Ele acabou por aceitar e, um mês depois de reabrimos, começámos logo a ganhar prémios: o nosso carabineiro com brulé de amêndoa foi eleito prato do ano pela Time Out e acabei por ser convidada para ser a única mulher da zona dos chefs do Time Out Market. Só consegui abrir lá porque penhorei o meu ordenado com o Aguinaldo, que me emprestou 60 ou 70 mil euros. Entretanto engravidei.

Lembra-se do dia em que fecharam o restaurante?
30 de Junho de 2015. Foi o dia em que nasceu a minha filha. O administrador que gere os negócios dele nunca acreditou no Avenue porque não dá valor àquela cozinha, prefere uma mais rústica. Sinto que se tivéssemos prosseguido o nosso caminho hoje teríamos uma estrela Michelin. Foi um embate difícil e fui-me um pouco abaixo. Durante um ano, dediquei-me à minha filha e o João [Sá], o meu marido, assumiu o restaurante no Time Out Market.

Foi preciso coragem para abrir dois restaurantes, o Zunzum e o Marlene, no meio de uma pandemia?
Não tenho medo de arriscar. O medo empurra-me para a frente. Quando abrimos o Zunzum, no Verão de 2020, foi uma felicidade inexplicável, quase parecida com a que senti quando tive a minha filha. Os clientes também vinham felizes como nunca, achavam que a pandemia já estava quase a acabar. Depois, em Janeiro de 2021, fechou tudo outra vez e esse foi um embate muito doloroso. Em Março, eu e o João sentíamos que não íamos aguentar muito mais tempo. Se não abríssemos em Abril, o plano era entregar os espaços e irmos à nossa vidinha, não sei muito bem para onde. Felizmente pudemos abrir em Abril, só que as pessoas já não vinham felizes: estavam insuportáveis, porque tinham estado três meses fechadas em casa. Os próprios funcionários vinham muito mal e foi bastante difícil gerir as expectativas de toda a gente. Até estou a fazer terapia porque fiquei exausta, comecei a ficar deprimida. Tive de aprender a aliviar a carga.

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Chefs Sem Reservas DR

Já este ano, abriu o Marlene, uma experiência de fine dining mesmo ao lado do Zunzum. É desta que a estrela Michelin vai chegar?
Nunca fui tímida nos meus objetivos e não vou estar aqui com modéstia: vamos trabalhar para a estrela Michelin. É óbvio que é importante, porque traz clientes e viabilidade financeira, mas não nos faz desesperar. Sou muito feliz a perseguir as minhas próprias metas no dia-a-dia.


Nelson Marques é autor de “Chefs Sem Reservas: Segundo Prato” (Clube do Autor), lançado esta semana. Esta é a entrevista que serviu de base para o livro, onde aparece como texto corrido e como relato na primeira pessoa.

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