Natureza com Direitos
Imaginemos que a Serra da Estrela, além de ser uma zona protegida por um parque natural, era em si mesma um sujeito legal com direitos. E se os terrenos da região não fossem propriedade do Estado, ou deste ou daquele indivíduo ou entidade privada, mas constituíssem um todo independente? A Serra poderia, nestas circunstâncias, processar o Estado por não a ter protegido dos devastadores incêndios que destruíram extensas áreas do seu território, no que foi maior fogo do ano em Portugal, dizimando quase 4% de toda a área ardida na Europa este Verão. E procuraria tomar medidas para prevenir que deflagrassem novos incêndios nas suas terras, assim como para regenerar a flora e a fauna das áreas consumidas pelo fogo.
Mas, perguntará alguém, como é que a Serra da Estrela, que não é uma pessoa, pode tomar decisões e representar-se legalmente? Esta questão prende-se com um debate sobre os direitos da natureza que se tem vindo a estender a várias nações, algumas dos quais já consagraram os direitos do mundo natural nos seus sistemas jurídicos.
A noção de direitos da natureza não se refere simplesmente à proteção de determinados seres vivos, por exemplo alguns tipos de animais, tais como animais de companhia, nem meramente à definição do que configura um crime ambiental, algo que já existe na vasta maioria dos sistemas legais. Os direitos da natureza vão mais longe e estabelecem que o mundo natural, como um todo, ou determinadas entidades naturais, tais como a Serra da Estrela, são sujeitos de direito, independentemente da sua relação com os seres humanos. Trata-se de descentralizar a humanidade como a fonte de onde derivam todos os direitos e de reconhecer o valor intrínseco do mundo natural, para além de considerações económicas ou sócio-políticas. Como é que esta ideia funciona na prática?
O Equador foi o primeiro país do mundo a reconhecer, na sua Constituição de 2008, que a natureza tem direitos inalienáveis. Na secção “Direitos da Natureza” da Constituição lemos que “A natureza, ou Pacha Mama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente a sua existência e a manutenção e regeneração dos seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivo” (artigo 71).
E a quem cumpre fazer valer os Direitos da Natureza, caso estes não sejam respeitados? A Constituição equatoriana indica que “toda a pessoa, comunidade, povo ou nacionalidade poderá exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da natureza,” acrescentando-se ainda que “o Estado incentivará as pessoas naturais e jurídicas e os coletivos a proteger a natureza.” Ou seja, cabe a qualquer cidadã ou cidadão, bem com a entidades públicas ou privadas, pugnar pelos direitos do mundo natural. O Estado tem a responsabilidade de restaurar a natureza, no caso de desastres ambientais (artigo 72) e de restringir atividades que possam destruir ecossistemas ou alterar os ciclos naturais (artigo 73).
Seguindo as passadas do Equador, a Bolívia promulgou em 2010 a “Lei dos Direitos da Mãe Terra,” que adota o carácter de sujeito coletivo de interesse público (artigo 5), contando-se entre os seus direitos, o direito à vida, à diversidade da vida, à água, ao ar limpo, ao equilíbrio, à restauração e a viver livre de contaminação (artigo 7). Esta lei cria ainda uma provedoria da Mãe Terra que tem como função velar pela vigência, promoção, difusão e cumprimento dos direitos da natureza.
Já a Colômbia seguiu um caminho diferente, optando por outorgar direitos a determinadas regiões e biomas relevantes para o país. Em 2016, o Tribunal Constitucional colombiano reconheceu o Rio Atrato, que desagua no Mar das Caraíbas, como sujeito de direitos, determinando que se nomeasse um representante legal que velasse pelos interesses deste curso de água. Dois anos mais tarde, era a vez da Amazónia colombiana ser reconhecida pelo Tribunal Constitucional como sujeito de direitos, ordenando-se a construção de um Pacto Intergeracional pela Vida do Amazonas Colombiano no sentido de reduzir a zero o desflorestamento na região.
Não é coincidência o facto de termos mencionado até agora apenas países amazónicos e andinos como pioneiros na integração dos direitos da natureza nos seus sistemas jurídicos. A forte presença nesta região de povos indígenas, que reconhecem o mundo natural como parte integrante da sua vida social e até familiar, foi decisiva para as mudanças no entendimento jurídico da natureza nestes países. Para a vasta maioria das populações indígenas desta área, não há uma separação entre os seres humanos e o meio ambiente, sendo as diversas entidades que compõem o mundo natural encaradas como parentes, aliados, amigos ou inimigos, mas sempre como forças omnipresentes nas suas vivências diárias. A noção de direitos da natureza resulta assim de uma combinação entre conceções indígenas do mundo natural e a linguagem jurídica ocidental.
Foi também na sequência de reivindicações da população originária da Nova Zelândia, os Maori, que o governo deste país atribuiu em 2017 personalidade jurídica ao Rio Whanganui, ao declarar este curso de água um todo que se estende das montanhas até ao mar, incorporando todos os seus elementos físicos e metafísicos. Seguiu-se no mesmo ano o reconhecimento do Monte Taranaki, uma montanha na ilha norte do país considerada sagrada pelos povos Maori da área, como sujeito de direitos. A Nova Zelândia já tinha dado um passo no sentido de reconhecer os direitos da natureza em 2014 ao extinguir o parque natural Te Urewera, declarando que esta região, famosa pelas suas florestas e lagos e terra ancestral do povo Maori Tuhoe, deixaria de ser propriedade do país, passando a ser uma entidade legal independente.
Como resposta à degradação ambiental galopante que testemunhamos um pouco por todo o planeta, vários outros países ou regiões têm vindo a adotar a noção de direitos da natureza. Em 2017, a Cidade do México consagrou os direitos da natureza como parte da sua Constituição. O Supremo Tribunal do Bangladesh conferiu direitos legais, incluindo o direito à vida, a todos os rios do país em 2019 e, no mesmo ano, o Uganda promulgou a sua nova Lei Ambiental Nacional, na qual reconhece os direitos fundamentais da natureza de ser, de ter um habitat, de se desenvolver, e de se regenerar. Nos Estados Unidos, os direitos da natureza já fazem parte de leis locais em vários estados, incluindo o Ohio, o Colorado, a Pensilvânia e o Minnesota, embora não haja ainda qualquer lei federal neste sentido.
Os direitos da natureza estão longe de ser uma panaceia para todos os problemas ambientais. Coloca-se, desde logo, a questão da implementação destes direitos, que frequentemente contrariam os interesses de grandes empresas com meios para financiar longos e dispendiosos processos em tribunal. A principal contribuição dos direitos da natureza será talvez a nível conceptual, levando as pessoas a reconhecer que lugares como a Serra da Estrela não constituem uma mera coleção de coisas inertes, ou de terrenos que podem ser apropriadas por indivíduos ou corporações, mas que são entidades vivas, que têm o direito à sua existência, tal como cada um de nós, seres humanos.
Para os povos indígenas da América Latina, uma relação equilibrada com a natureza é essencial para o que estes denominam como o “bem viver.” No rescaldo de um Verão que testemunhou a destruição de inúmeras áreas naturais, consumidas por incêndios, e no contexto da grave crise ambiental que o planeta atravessa, não estará na hora de Portugal considerar a introdução dos direitos da natureza no seu sistema legal? Não viveríamos todos melhor se a Serra da Estrela fosse um sujeito de direitos?
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico