Covid e não-covid. A ministra e a teimosia infinita

Toda a gente sabe o impacto negativo que as decisões de todos os governos do ocidente tiveram na economia, na educação, na saúde mental, nos doentes não-covid, na nossa felicidade... Mas era desumano fazer diferente.

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"O adiar de consultas, cirurgias e exames foi uma atitude de desespero, de contingência" Reuters/BRUNO KELLY

Estava a ouvir o ex-Governo de Sombra e as suas apreciações sobre a demissionária ministra da Saúde, e em particular o João Miguel Tavares que, a dada altura, tenta dividir a sua opinião sobre o trabalho de Marta Temido, dizendo qualquer coisa como: para os doentes com covid se calhar esteve bem, mas para os não-covid nem por isso. E ainda conseguiu meter o impacto na educação das crianças com o fecho das escolas ao barulho.

Pareceu-me haver uma certa concordância do painel. A primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Passados dois anos há pessoas mais inteligentes do que eu que ainda não perceberam nada!”. A segunda: “Ai, é para ser abrangente na leitura? Então porque não ver os benefícios para a saúde da humanidade pelas diminuições drásticas das emissões do CO2, durante a pandemia, que estão a matar o nosso futuro?”

Mas vamos com calma. Eu não sei avaliar o trabalho de um ministro, nem sequer da saúde. Pouco me interessa defender a ministra. Mas a pessoa, que por acaso foi ministra, Marta Temido merece todo o meu respeito, pois foi crucificada em praça pública diariamente, recebeu rajadas de metralhadora de puro fel de gregos e troianos num desafio épico que, em boa verdade, ninguém sabia, ninguém sabe e ninguém saberá a solução mágica para o confronto como sociedade contra este maldito vírus.

Só os maluquinhos dos negacionistas é que acham que, de repente, os médicos que toda a vida trabalharam no SNS decidiram preferir doentes covid a doentes não-covid, e por arrasto a ministra também tinha utentes “preferidos”. Isto é pura ignorância e paranóia. Qualquer doença é mais bem tratada na prevenção do que na resolução das complicações urgentes. O adiar de consultas, cirurgias e exames foi uma atitude de desespero, de contingência.

O que mais me deixa furibundo nestas análises simplistas de quem nada sabe é a demagogia. Teriam coragem de ir para a porta de um hospital e dizer às pessoas que podiam voltar para casa para morrer? Estão a imaginar o impacto que isto teria nos profissionais de saúde, nos doentes que iriam morrer, nos familiares que ficavam em casa a ver desfalecer os seus durante uns dias?

Lembram-se das imagens da Índia ou de Manaus, em que se desesperava por cilindros de oxigénio fora do hospital, com os hospitais de portas fechadas a dizer que não entrava mais ninguém? Conseguiriam sobreviver a essa decisão mesmo que, a longo prazo, a mortalidade fosse ligeiramente menor no global, sei lá com que contas? Pois eu acho que não. E não tenho doentes preferidos e acredito que a ministra também não.

Há decisões que só se compreendem no dilema ético, na humanidade, nas emoções. Quando um doente chega a sangrar ao hospital, nós não podemos dizer que aquela cirurgia vai roubar recursos para a prevenção de diabetes e hipertensão. Seria desumano não tentar parar essa hemorragia. Compreendem o impacto das emoções no segundo, na hora, no dia, no pico da pandemia com médicos e enfermeiros a chorar e ambulâncias com doentes anestesiados e ventilados do Porto para Lisboa e, mais tarde, vice-versa?

Toda a gente sabe o impacto negativo que as decisões de todos os governos do ocidente tiveram na economia, na educação, na saúde mental, nos doentes não-covid, na nossa felicidade... Mas era desumano fazer diferente.

E, já agora, se acham que a ministra ou o governo até geriu bem a pandemia, relembro o Natal de 2020, período durante o qual fomos os mais liberais da Europa. Até a Suécia, que os negacionistas adoram, teve medidas/recomendações muito mais apertadas que nós. Sabem qual foi o resultado? De repente, tinha jornalistas da CNN Internacional e da Reuters, entre outros, a querer entrevistar-me para comentar porque é que Portugal durante largos dias foi a vergonha mundial em mortos covid por dia. Portanto, talvez as palavras “correu bem” para a gestão da pandemia não sejam as mais honestas.

Não pretendo fazer política. Mas quem lá esteve, no comando, navegou quase às escuras perante uma tempestade totalmente desconhecida e fez o melhor que soube pelos doentes, pelos cidadãos em geral —​ e pela vontade que nos mantivéssemos humanos.

Esta teimosia infinita de criticar até ao fim dos dias é muito fácil. O difícil é rebobinar o filme e apresentar alternativas. Sejamos honestos. Nem tudo são números.

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