Nem só de cidades se faz Portugal

Em matéria de prédios rurais, “perdido” assume um duplo sentido: literal e metafórico. Em boa verdade, não podemos esperar que o mundo rural se desenvolva se uma percentagem considerável do país não tem nem dono nem rumo.

Foto
Nuno Ferreira Santos

O facto de não conhecermos os limites e os proprietários de parte dos prédios rurais que constituem o nosso território é um problema há muito conhecido. Duas consequências objectivamente preocupantes resultam desse problema.

Por um lado, os terrenos abandonados acentuam a vulnerabilidade, deflagração e propagação de incêndios. Por outro, os recursos naturais que o país possui não são aproveitados ou potenciados. Pela valorização do que é nosso e pela consideração para com aqueles que habitam as nossas aldeias e vilas, é essencial tomar medidas: primeiramente, fazer um cadastro que nos permita saber como é dividido e a quem pertence o território e, por fim, estimular a exploração do mesmo.

A forma como as pessoas se foram distribuindo ao longo do país esteve, desde sempre, intimamente ligada com as oportunidades aí oferecidas. Antes da forte industrialização do século passado – e do consequente êxodo rural – os portugueses estavam bastante mais distribuídos. Por essa altura as aldeias e vilas eram massivamente habitadas por aqueles que laboravam as terras que as circundavam.

A fuga de uma parte considerável da população portuguesa para os grandes centros urbanos – culminando no severo despovoamento de vilas e aldeias – deveu-se essencialmente ao facto de a agricultura e actividades do sector primário deixarem de ser atractivas como foram outrora. Os dados confirmam-no: na década de 50 cerca de metade da população activa vivia da agricultura. Hoje apenas 4% dos empregados se ocupa desta actividade.

Desde então o alheamento aos prédios rurais foi crescente. À parte dos prédios explorados pelos proprietários ou por terceiros, existem dois casos. Por um lado, aqueles que pertencendo a alguém não são explorados, por outro os que estão abandonados – no sentido em que se desconhece a quem pertencem. Neste último caso, aos olhos do Código Civil, os terrenos pertencem ao Estado. Contudo, não havendo um cadastro do país, o próprio Estado desconhece os terrenos que lhe pertencem. “Quem o seu deixa, perdido o quer”, já dizia o ditado popular. E em matéria de prédios rurais, “perdido” assume um duplo sentido: literal e metafórico. Em boa verdade, não podemos esperar que o mundo rural se desenvolva se uma percentagem considerável do país não tem nem dono nem rumo.

Felizmente, há hoje a vontade política, o investimento e a tecnologia necessária à resolução deste problema. Essa solução chama-se BUPi, Balcão Único do Prédio. O programa foi lançado pelo Governo em 2017 e numa fase inicial dez municípios aderiram ao projecto piloto.

A julgar pelos dados recentemente lançados pelo Ministério da Justiça, os resultados são animadores: o BUPi abrange actualmente 141 municípios, nos quais foram identificadas mais de 600 mil propriedades com o contributo de mais de 100 mil cidadãos. Temos, por fim, num esforço conjunto entre o poder central e as autarquias, com o contributo dos cidadãos e de bases de dados preexistentes, uma plataforma que de forma simplificada permite fazer o mapeamento do território, identificando os limites e proprietários de cada prédio rural. O caminho vai sendo feito de uma forma acelerada e disso só poderemos obter vantagens.

Numa fase em que a maioria do país esteja mapeada e identificada, estarão então reunidas as condições necessárias para se prosseguir com um planeamento e gestão mais eficiente do território. Seria, todavia, verdadeiramente ingénuo idealizar um cenário em que se encontram alternativas que rentabilizam a totalidade dos prédios rurais do país. Não devemos, no entanto – como aliás acontece com todas as políticas públicas deixar de ambicionar uma realidade melhor que aquela que vivemos.

Nesse caso há alguns constrangimentos a ter em conta. Entre eles, talvez o mais severo seja o facto de os terrenos rurais portugueses terem uma dimensão consideravelmente menor que a desejável para o rendimento de uma actividade económica que aí se desenvolva. Desde a democratização da terra, em meados do século XIX, que os prédios têm sido sucessivamente divididos de geração em geração. Na região do Alentejo, por exemplo, o valor médio do prédio rural é de 12 hectares. É por isso urgente facilitar aos investidores, associações e cooperativas a criação de emparcelamento, isto é, junção de vários prédios de reduzida dimensão para o desenvolvimento de uma actividade que os dinamize.

O nosso território é constituído em mais de 90% por prédios rurais. O facto de não conhecermos a quem pertence partes desse território e de não fomentarmos a sua exploração provoca efeitos indesejáveis na sociedade. Entre eles, os incêndios que todos os anos colocam em causa a estabilidade de centenas de famílias portuguesas ou o subaproveitamento das suas potencialidades. Passos importantes têm sido dados nesta matéria. Os resultados têm traduzido sucesso no caminho seguido. Há que dar-lhes continuidade. O país não é só cidades. Há que olhar para o resto do território e dar-lhe oportunidades de desenvolvimento.

Sugerir correcção
Comentar