Quem quer, vê

Não há muitos anos, embora a um velho como eu me pareçam décadas, o recato, a discrição e um público sentido de equilíbrio social e rigor moral eram atributos manifestos dos juízes portugueses.

No passado dia 27 de Julho, o meritíssimo juiz desembargador Manuel Soares, digno presidente da Direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e colunista deste jornal publicou nele um artigo que lança uma onda de suspeição genérica sobre empresários, políticos, advogados e funcionários públicos, muito frouxamente camuflada como uma suposta “ficção a meio caminho da realidade” sobre a arbitragem. O artigo intitula-se, mais azougadamente, Só não vê quem não quer.

Indignado com a aleivosia, ponderei responder, na minha qualidade de ficcionista profissional, com uma diatribe semelhante, assumidamente “fictícia”, amalgamando casos conhecidos ou calados de malandrices ou mesmo bandalhices no seio da magistratura judicial. Optei por não o fazer, porque, apesar de tudo e de alguns meritíssimos e meritíssimas, continuo a prezar muitos dos juízes e das juízas nacionais.

No dia 6 de Agosto, o dr. Nuno Cerejeira Namora, advogado que não conheço, respondeu ao meritíssimo desembargador com uma serenidade, uma seriedade e uma correcção que publicamente saúdo e intimamente invejo. O artigo intitula-se também, e muito a propósito, Só não vê quem não quer. E animou-me a expressar civicamente a minha indignação.

A insustentável leveza com que o meritíssimo desembargador Manuel Soares usa e abusa da sua tripla qualidade de magistrado, sindicalista e articulista opinativo envolve frequentemente os seus escritos numa espuma perfumada de pesporrência e populismo narcísicos que, sendo vulgar nos tempos que correm, pouco dignifica ou até desacredita a sua corporação. Não há muitos anos, embora a um velho como eu me pareçam décadas, o recato, a discrição e um público sentido de equilíbrio social e rigor moral eram atributos manifestos dos juízes portugueses, que não apenas por isso mas também por isso atraíam o respeito e a admiração dos seus concidadãos. Sei bem, sabemos todos os mais antigos e atentos, que o mundo mudou e que a mutação não poupou ninguém, incluindo os juízes, por muito encapsulados e endogâmicos que estes se entrincheirem e pretendam arredar do vulgo.

A mutação cultural e civilizacional em curso toca a todos. Um certo back to basics não me parece desadequado para quem se preocupe, ainda que serodiamente ou ingenuamente, com os valores básicos que devem nortear a nossa vida comunitária e, em particular, a acção dos que exercem em relação a todos nós a função soberana de administrar justiça. Por isso, e no simples e edificante intento de suavizar os ímpetos da afectação que distingue os que se julgam ungidos como superiores aos manhosos e corruptos que no seu entender infestam a política e os negócios nativos, atrevo-me a respeitosamente recomendar ao meritíssimo desembargador Manuel Soares alguma discrição, um certo recato e, sobretudo, um humilde bom senso e um mínimo bom gosto na escrita dos seus artigos jornalísticos. Esse composto de santos remédios, mesmo que tomado em doses homeopáticas, podia tornar os seus escritos não apenas mais interessantes e instrutivos, mas sobretudo mais justos.

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