Há risco nuclear em Zaporijjia? Quem controla a maior central nuclear da Europa?

Moscovo e Kiev continuam a trocar acusações sobre a autoria dos bombardeamentos recorrentes em Zaporijjia. A Agência Internacional de Energia Atómica alerta para o risco de desastre nuclear na maior central nuclear da Europa.

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Um soldado com uma bandeira russa no uniforme à entrada da central nuclear de Zaporíjjia Reuters/ALEXANDER ERMOCHENKO

A Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) voltou a alertar este fim-de-semana para o risco de desastre nuclear na central nuclear de Zaporijjia, no sudeste da Ucrânia, alvo de ataques desde Março. O aviso foi feito pela primeira vez há cinco meses, quando um incêndio deflagrou na infra-estrutura durante a invasão das tropas russas.

A empresa estatal de energia nuclear da Ucrânia, a Energoatom, diz que é impossível averiguar o impacto exacto dos bombardeamentos deste sábado, 6 de Agosto, porque foram danificados três sensores de radiação.

Entretanto, Moscovo e Kiev continuam a trocar acusações sobre a responsabilidade dos ataques. Apesar de estar sob o controlo de Putin, a central de Zaporijjia continua a ser operada pelos técnicos ucranianos, que se mantêm em contacto com a Energoatom.

O que aconteceu durante os ataques mais recentes?

Zaporijjia foi alvo de ataques sucessivos nas noites de sexta-feira e sábado: Kiev culpa Moscovo, Moscovo culpa Kiev. Os bombardeamentos de sexta-feira atingiram uma linha de alta tensão na central, levando os técnicos ucranianos a desligar um reactor por precaução. Não foi detectada qualquer fuga de radiação. Os de sábado terão danificado três sensores de radiação e ferido um técnico ucraniano.

No domingo registaram-se novos ataques à central. Responsáveis? Moscovo voltou a acusar as forças da Ucrânia, o que Kiev nega. O Ministério da Defesa russo disse que os bombardeamentos danificaram uma linha eléctrica de alta tensão que fornece electricidade às regiões de Zaporijjia​ e Kherson. Registou-se ainda um pico de energia eléctrica, que disparou um sistema de segurança que cortou o fornecimento de energia, acrescentou Moscovo.

Quem controla a central?

A central de Zaporijjia está sob o controlo russo desde Março. Os técnicos ucranianos, que estavam a trabalhar na central durante a invasão, foram obrigados a continuar em funções, mas Moscovo enviou os próprios peritos nucleares para acompanhar o seu trabalho. Moscovo acusa Kiev de orquestrar os ataques recentes para reconquistar o controlo das instalações nucleares.

O que se está a passar lá dentro?

O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), com sede nos Estados Unidos, acredita que as tropas russas estarão a utilizar a central para armazenar explosivos e munições. Segundo um relatório recente do ISW, a Rússia mobilizou perto de 500 soldados, veículos blindados e equipamentos antiaéreos para o interior da central.​

É ideia repetida pelo secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken: “A Rússia está a utilizar a central como base militar para disparar contra os ucranianos, sabendo que eles não podem e não vão disparar de volta”, argumentou Blinken, num debate da ONU sobre a possibilidade dos bombardeamentos atingirem reactores ou resíduos radioactivos em Zaporijjia. “Isso eleva a noção de escudo humano a um nível completamente diferente.”

Qual a importância desta central eléctrica?

A central nuclear de Zaporijjia, construída entre 1984 e 1995, é a maior central nuclear da Europa e a nona maior do mundo. É uma das quatro centrais nucleares ucranianas, sem contar com Tchernobil, que está desactivada. Cada um dos seus seis reactores gera 950 megawatts: a potência combinada (5700 megawatts) é o suficiente para iluminar quatro milhões de habitações.

Antes da guerra, Zaporijjia era responsável por um quarto da electricidade produzida na Ucrânia, tendo especial interesse estratégico no conflito. A localização também é relevante: Zaporijjia fica no sudeste da Ucrânia, nas margens do rio Dnieper, a cerca de 200 quilómetros da região contestada de Donbass e a 200 quilómetros da Crimeia, que a Rússia anexou em 2014. A central fica 550 quilómetros a sudeste de Kiev.

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Zaporíjjia é a maior central nuclear na Europa Reuters/ALEXANDER ERMOCHENKO

Há risco nuclear?

Por ora, a situação está sob controlo. Mas há meses que o líder da AIEA, Rafael Mariano Grossi, diz estar preocupado com os ataques à central nuclear de Zaporijjia. De acordo com Grossi, os bombardeamentos deste fim-de-semana mostram o risco de um desastre nuclear e Moscovo deve autorizar a entrada da AIEA para averiguar a situação.

"Estou extremamente preocupado com os bombardeamentos na maior central nuclear da Europa, que mostram o risco muito real de um desastre nuclear que poderia ameaçar a saúde pública e o ambiente, na Ucrânia e não só”, disse em comunicado. “O pessoal ucraniano que trabalha na central sob ocupação russa deve ser capaz de desempenhar as suas funções sem ameaças ou pressões que prejudiquem não só a sua própria segurança mas também a das próprias instalações.”

Em Março, Park Jong-woon, professor no Departamento de Energia e Engenharia Eléctrica na Universidade de Dongguk, na Coreia do Sul, disse à Reuters não acreditar numa ameaça nuclear imediata, mas sim numa estratégia para gerar confusão e medo. “[As forças de Putin] podem fazer com que as pessoas fiquem inseguras, em pânico, e espalhar o medo”, disse Pak, que trabalhou na concepção e construção de reactores nucleares entre 1996 e 2009.

Há países a preparar-se para um desastre nuclear?

Sim. Face ao comunicado de Grossi, a Roménia decidiu agir. O ministro da Saúde do país, Alexandru Rafila, pediu às pessoas com menos de 40 anos para comprarem “o mais rapidamente possível” comprimidos de iodeto de potássio, avançou a imprensa local. “Peço a todas as pessoas até aos 40 anos que vão ao médico de família o mais rapidamente possível para que recebam a receita dos comprimidos de iodeto de potássio”, disse.

De acordo com o ministro, há 2500 farmácias com stock, sendo que o medicamento é gratuito (mediante apresentação da receita médica). Segundo o ministério da Saúde romeno, as pessoas abaixo dos 40 são as mais expostas ao desenvolvimento de cancro e lesões da tiróide devido à radiação. O iodeto de potássio inibe a tiróide de absorver radiações, mas não impede que a radioactividade entre no organismo, nem reverte danos se a tiróide já tiver sido afectada.

A central ainda está a funcionar?

Normalmente, a central gera mais de metade da energia nuclear da Ucrânia e 20% do fornecimento total de electricidade do país. Mas agora apenas dois dos seis reactores estão a funcionar. Segundo dados da Agência Nuclear da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, dois dos quatro cabos de alta tensão da central foram danificados.

Em Maio, um porta-voz da agência nuclear estatal da Ucrânia, Energoatom, disse ao canal britânico BBC que a central eléctrica continuava a funcionar, mas a um nível muito inferior ao normal.

É possível retomar o controlo da central nuclear?

A AIEA avisa que é impossível determinar o ponto da situação sem informações imparciais e independentes sobre o estado das instalações. As Nações Unidas já se manifestaram disponíveis para apoiar a AIEA na sua missão.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, declarou, no sábado, que “as armas nucleares são um absurdo” e que a humanidade está “a brincar com uma arma carregada”. Falava sobre a situação da Ucrânia durante um discurso por altura do 77.º aniversário da bomba atómica em Hiroxima, no Japão.

O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que acusa Moscovo dos ataques em Zaporijjia, pede novas sanções internacionais. “Os terroristas russos tornaram-se os primeiros no mundo a utilizar uma central nuclear para o terror. A maior da Europa! Vamos chamar a atenção do mundo para este facto e insistir em novas sanções contra a Rússia por criar uma ameaça tão global”, apelou Zelensky num discurso emitido na noite de sábado.

Zelensky repetiu o pedido durante um telefonema com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, na manhã de domingo. “O terror nuclear russo exige uma resposta mais forte da comunidade internacional - sanções contra a indústria nuclear russa e o combustível nuclear”, resumiu no Twitter.


Artigo actualizado às 17h37 de dia 8 de Agosto: acrescenta os acontecimentos de domingo e o apelo do ministério da Saúde romeno.

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