James Lovelock: morreu aos 103 anos o fundador da teoria de Gaia

Cientista, conhecido por alguns como um “profeta do desastre”, propôs a (controversa) hipótese de que a Terra é um organismo vivo, cujo clima é auto-regulável.

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James Lovelock sofrera uma queda aparatosa há seis meses e foi vítima de complicações resultantes desse acidente Alberto Cristofari/Reuters

Era um dos cientistas independentes mais conhecidos (e controversos) do Reino Unido. E foi o criador da teoria de Gaia, segundo a qual o planeta pode ser pensado como um organismo vivo — um organismo dentro do qual atmosfera, ciclo geológico, oceanos e todos os ecossistemas interagem e se adaptam, produzindo um efeito auto-regulatório que promove a própria existência da vida. Morreu esta terça-feira, no dia do seu 103.º aniversário, o químico James Lovelock, que em tempos o jornal britânico The Observer descreveu como “uma das figuras mais influentes do movimento ambientalista”.

“O nosso amado James Lovelock morreu ontem [terça-feira], em casa, rodeado pela família. Para o mundo, era conhecido como um profeta climático e o idealizador da teoria de Gaia. Para nós, era um marido amoroso e um pai maravilhoso, com uma curiosidade sem limites, um sentido de humor peculiar e uma paixão pela natureza”, disse esta quarta-feira a família, tornando pública a notícia da morte. A esposa (Sandra) e os filhos (Andrew, Christine, Jane e John) revelaram que o cientista começou a ter problemas de saúde há seis meses, quando teve uma queda aparatosa.

Criador de um importante dispositivo que hoje é usado para detectar a presença de átomos e moléculas em gases, Lovelock foi o primeiro a demonstrar a presença de quantidades perigosas de clorofluorocarbonetos (CFC) na atmosfera. Durante muitos anos, os CFC, químicos que contêm carbono, cloro, flúor e hidrogénio, foram usados em aerossóis e refrigerantes, bem como na produção de espuma rígida de empacotamento. A sua utilização foi proibida em determinados países quando se descobriu que eles serão os grandes culpados pela destruição da camada de ozono.

James Lovelock tinha um talento invulgar para desenvolver dispositivos úteis a partir de materiais usados e condenados ao lixo. Esse talento foi valorizado pela NASA, que começaria a requisitar os seus serviços na década de 1960. O britânico passou uma temporada a colaborar com a agência espacial norte-americana, trabalhando no design de vários instrumentos científicos.

A NASA passou parte dos anos 1960 a tentar perceber se havia ou não vida em Marte. Um dia, Lovelock sugeriu que, simplesmente analisando a composição atmosférica de um planeta, dava para saber quão provável era esse planeta ser habitável ou não. O britânico constatou que, enquanto as atmosferas de planetas como Marte e Vénus (que não têm vida humana conhecida) apresentavam equilíbrio químico, a atmosfera terrestre era marcadamente diferente. Essa observação levá-lo-ia à teoria de que a Terra é um organismo vivo, cujo clima é auto-regulável.

O químico desenvolveu a teoria de Gaia com a ajuda de Lynn Margulis (1938-2011), bióloga americana que ficaria conhecida pela sua teoria da “simbiogénese”. Segundo o darwinismo, os motores da evolução dos organismos vivos são a variabilidade genética, introduzida de geração em geração por mutações espontâneas e aleatórias, e a selecção natural. Margulis não acreditava totalmente nesta visão. Atribuía a complexidade dos organismos multicelulares não ao resultado de mutações, mas a fusões de bactérias, num processo de aparente entreajuda em que o organismo resultante era muito mais do que a soma das suas partes.

Hipótese polémica

Lovelock e Margulis escreveriam sobre a teoria de Gaia em vários artigos científicos. Polémica, a hipótese não é apoiada pela comunidade científica de forma unânime. Quando foi inicialmente apresentada, biólogos como Ford Doolittle, Richard Dawkins e Stephen Jay Gould, que frequentemente discordavam entre si, uniram-se num cepticismo.

Muitos consideraram a hipótese excessivamente teleológica. Ela assume que tudo acontece por um motivo e que há um propósito maior, disseram alguns críticos. A teoria de Gaia é “uma metáfora, não um mecanismo”, afirmaria, descontente, Stephen Jay Gould. O paleontólogo queria que James Lovelock e Lynn Margulis explicassem às pessoas quais eram os processos que efectivamente permitiam à Terra regular o seu próprio clima.

Outro argumento que é feito com frequência para questionar o rigor da teoria de Gaia é o seguinte: são muitos e até diários os exemplos de acontecimentos em que os humanos, ao invés de ajudarem à regulação do ambiente, só contribuem para a perturbação do mesmo.

Apesar de contestada, a hipótese tornar-se-ia popular. Não deixaria de ser discutida. E James Lovelock também não desapareceria do radar. Manter-se-ia relevante, alertando para problemas que demoraram a adquirir protagonismo na agenda política internacional (mas são hoje incontornáveis).

O cientista começou a falar do impacto ecológico dos combustíveis fósseis no início dos anos 2000. Defendeu que, uma vez que o planeta estava a aquecer, tínhamos de transitar para a energia nuclear (e, mais uma vez, as suas declarações causaram grande controvérsia).

O químico ficaria conhecido como um “profeta do desastre”. “A biosfera e eu estamos no último 1% das nossas vidas”, disse ao The Guardian em 2020. Foi essa a frase que esse jornal colocou no título da entrevista que fez ao britânico, a propósito do seu 101.º aniversário.

“James Lovelock foi um cientista que gerou muita controvérsia entre os teóricos de ecologia”, disse ao PÚBLICO a bióloga Maria Amélia Martins-Loução, reagindo à morte do químico. “A sua teoria de Gaia, fortemente apoiada por Lynn Margulis, propõe que a biosfera e os componentes físicos da Terra estão intimamente interligados, formando um sistema complexo que se mantém em homeostase. Ao propor esta teoria — que muitos ainda denominam hipótese —, ele baseia-se no seu conhecimento e investigação sobre a química da atmosfera, chamando a atenção para a importância de se ter em conta as condições climáticas e biogeoquímicas do planeta”, contextualizou a presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia, que é professora catedrática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

“Ao longo da história da ecologia, Lovelock teve um papel relevante, insistindo para que olhássemos a Terra como um corpo capaz de regular o seu metabolismo. Foi dos primeiros a chamar a atenção para a necessidade da regulação climática, há mais de 50 anos. Outra controvérsia que gerou junto dos ecólogos foi o facto de ter sido um acérrimo defensor da energia nuclear”, completou Maria Amélia Martins-Loução. “Tal como [sucedeu com] Lynn Margulis, só o tempo lhe dará o devido valor.”

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