Património histórico ferroviário: mais Valongo, menos Gaia

Esperava-se uma maior consideração por parte dos poderes eleitos de Vila Nova de Gaia por uma tecnologia (e pelos homens e mulheres que a fizeram) que, no passado, contribuiu para o desenvolvimento do concelho.

O primeiro caminho de ferro em Portugal foi inaugurado no dia 28 de outubro de 1856, há quase 166 anos. O impacto da ferrovia no país é inegável, ao nível da circulação de pessoas, bens, capital e ideias, da apropriação territorial das periferias, da troca de conhecimento técnico e da memória coletiva.

Ao longo daquela mais que centúria e meia, o sector conheceu diversas inovações na construção, operação, manutenção, bilhética, etc. O betão substituiu o aço na montagem de pontes, o plástico foi paulatinamente tomando o lugar do vidro e da madeira, o vapor deu lugar ao diesel e este à eletricidade e variados melhoramentos e inovações foram introduzidos em diversos serviços.

A natural obsolescência de materiais e tecnologias não significou o seu completo desaparecimento. O património histórico ferroviário português beneficiou de não ter sido sujeito às agruras e destruição de uma guerra prolongada (como aconteceu, por exemplo, em Espanha, com a Guerra Civil de 1936-1939) e de ter sido utilizado para lá da sua expectável vida útil (como ilustra o caso das locomotivas a vapor de via estreita, que ainda eram usadas na década de 1970).

Adicionalmente, graças à iniciativa de vários cidadãos, sobretudo no meio ferroviário, muito deste espólio foi preservado e inventariado. O destaque vai claramente para o engenheiro Ginestal Machado, que dá o nome à fundação que gere a rede de museus ferroviários em Portugal, e que desde a década de 1970 promoveu a preservação do património do caminho de ferro e a abertura das primeiras secções museológicas da CP em infraestruturas retiradas do serviço ativo.

De qualquer modo, muito ainda há a fazer, pois se algum daquele material, infraestruturas e veículos não foi destruído, foi, porém, deixado ao abandono e condenado a uma erosão lenta, que pode inviabilizar a sua recuperação futura. Felizmente, alguns autarcas de concelhos por onde passa (ou passou) o caminho de ferro têm demonstrado noção e visão da importância da preservação do património histórico ferroviário, como homenagem ao seu passado e investimento para o presente e futuro.

Citando apenas alguns exemplos recentes, temos as câmaras municipais de Bragança e Águeda. A primeira, entre 2018 e 2019, investiu perto de um milhão de euros na recuperação, ampliação e reabertura do Núcleo Museológico ferroviário da cidade. A segunda tem igualmente promovido a valorização do património ferroviário do seu concelho, quer através da realização do comboio histórico do Vouga a vapor (em parceria com a CP), quer através da recuperação da estação local e requalificação do espaço envolvente (em parceria com a IP). Seguindo estas pisadas, a Câmara de Lagos irá também a breve trecho proceder a uma intervenção de fundo visando a reabertura do Núcleo Museológico Ferroviário do concelho, situado na antiga cocheira de locomotivas.

O mais recente exemplo foi dado pela Câmara Municipal de Valongo, que, no passado dia 16 de julho de 2022, inaugurou o Espaço de Homenagem ao Ferroviário junto à estação de Ermesinde, onde pontifica uma antiga locomotiva a vapor restaurada para o efeito. O investimento montou a cerca de 100 mil euros e, de acordo com o presidente da câmara, José Manuel Pereira Ribeiro, servirá de mote para outros eventos ligados à ferrovia que atrairão turistas e interessados na temática ao concelho, além de, obviamente, “homenagear todos aqueles que a partir do concelho de Valongo ajudaram a escrever a extraordinária história dos caminhos de ferro em Portugal”.

Esta postura contrasta claramente com a posição da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, que, apesar de alertada em reunião do executivo e em assembleia municipal para a situação precária de um conjunto de locomotivas depositadas na estação das Devesas, deu a entender que espera que a CP (proprietária das máquinas) assuma a responsabilidade do restauro. Esta opção contrasta com praticamente todas (se não mesmo todas) as iniciativas de recuperação do património ferroviário, que contaram com o auxílio das edilidades locais. O omnipresente e gasto argumento da falta de dinheiro não colhe nesta situação, se recordarmos que a câmara prevê gastar 5.6 milhões de euros em parques temáticos com referências a elementos (Abelha Maia, Peter Pan, Pinóquio…) que nada ou quase nada têm que ver com a história e passado da cidade.

De acordo com a comunicação social, o objetivo da câmara é “passar mensagens positivas que façam crescer o espírito cívico e a solidariedade dos mais jovens”. Um propósito meritório, que seria alcançado mais eficazmente com a utilização de elementos ligados à história local, que existiram realmente e não são meros frutos da imaginação de autores estranhos ao contexto gaiense.

Naturalmente, as decisões do executivo camarário são completamente legítimas, uma vez que resultaram de uma eleição democrática. Em todo o caso, esperava-se uma maior consideração por parte dos poderes eleitos por uma tecnologia (e pelos homens e mulheres que a fizeram) que, no passado, contribuiu para o desenvolvimento de Vila Nova de Gaia e que, no futuro, acentuará a sua ligação à cidade com a alta velocidade, num caminho de desenvolvimento sustentável.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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