Jane Goodall: crises do clima e da biodiversidade “são o resultado do nosso desrespeito pelo mundo natural”

Os desafios são muitos, das alterações climáticas à sobrepopulação, mas enquanto puder, Jane Goodall quer continuar a dar esperança às pessoas para lutarem por um mundo melhor. Conversámos com a famosa activista de 88 anos que nos transportou para os tempos em que estudava chimpanzés: “Eram os dias mais incríveis.”

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A etóloga Jane Goodall ENRIC FONTCUBERTA/EPA/Lusa

Ainda era manhã em Bournemouth, na costa Sul de Inglaterra, quando falámos com Jane Goodall. “Está muito, muito quente”, informa-nos a naturalista, numa chamada de vídeo, a partir da sua casa. “A vossa onda de calor veio até nós.” A entrevista à famosa etóloga, naturalista e activista calhou no dia em que a Grã-Bretanha bateu o recorde da temperatura máxima (19 de Julho), um facto revelador do impacto crescente das alterações climáticas, que preocupa a activista e atravessa as suas conversas.

Os últimos anos de pandemia obrigaram Goodall a ficar em casa, mas o seu trabalho enquanto defensora da natureza e dos animais não abrandou, com palestras, entrevistas e encontros virtuais que chegaram a muitas pessoas. “Nunca trabalhei tanto ou estive tão exausta em toda a minha vida”, admite a activista, que completou 88 anos em Abril.

Jane Goodall nasceu em 1934, em Bournemouth. O amor pelos animais e as histórias de Tarzan e do Dr. Dolittle alimentaram desde criança uma vontade de visitar África e trabalhar com animais. O desejo concretizou-se em Julho de 1960, graças ao famoso paleoantropólogo Louis Leakey que a enviou para Gombe, uma floresta no Noroeste da Tanzânia, junto ao lago Tanganica, para estudar um grupo de chimpanzés.

Foi em Gombe que passou “dias e dias sozinha” seguindo famílias de chimpanzés, tornando-se quase parte do grupo de primatas e mostrando ao mundo algo que aprendera com Rusty, o seu cão de infância: os animais tinham emoções, personalidades próprias, uma mente. “Essa é uma das coisas pelas quais gostaria de ser lembrada.”

Em 1977, a naturalista fundou o Instituto Jane Goodall, para a protecção dos chimpanzés. No entanto, é na década de 1980 que se torna numa activista, quando se apercebeu da diminuição da biodiversidade no planeta. Dessa preocupação nasceram os programas Tacare e Roots & Shoots (Raízes e Rebentos), que incentiva jovens de muitos países (incluindo em Portugal) a fazerem algo pela natureza. De lá para cá, Goodall percorreu o mundo com as suas bandeiras, escreveu livros e recebeu prémios, como o Templeton em 2021.

Em 2019, a activista iniciou várias entrevistas com o escritor norte-americano Douglas Abrams para falar sobre esperança. As conversas foram a base da obra O Livro da Esperança – Um Guia de Sobrevivência para Tempos Difíceis, de Jane Goodall, Douglas Abrams e Gail Hudson, publicada no início de 2022 em Portugal, pela editora Nascente. Na mala, o escritor levou para as entrevistas questões sobre a esperança: o que é, que motivos há para ter esperança e como ultrapassar o desespero? É com as respostas da naturalista que Douglas Abrams constrói os diálogos do livro, cativado pelo “olhar penetrante” de Jane Goodall, cuja intensidade tranquila não é diminuída pelo ecrã do computador, como pudemos comprovar. Comecemos, então, pela esperança.

Porque quis escrever um livro sobre a esperança?
Há cada vez mais pessoas a perderem a esperança por causa dos horrores: ficam apáticas, não fazem nada. Quando isso acontece, estamos condenados, especialmente os mais jovens. Porque a esperança faz com que valha a pena tomar uma atitude. Se não houver esperança, de que vale o incómodo de fazer algo? Nada.

Vejo a nossa espécie na saída de um túnel muito comprido e escuro. No fim desse túnel, há uma pequena estrela, que é a esperança. Não podemos ficar sentados, à espera de que a esperança venha ter connosco. Temos de arregaçar as mangas, desviar-nos de todos os obstáculos que existem entre nós e a estrela. São muitos: há a pandemia, as alterações climáticas, a perda de biodiversidade, há muita crueldade, a poluição, a pobreza...

Mas para cada um destes problemas, há vários grupos de pessoas que estão a trabalhar para o solucionarem. A questão é que muitos deles estão a trabalhar em pequenos túneis estreitos e podem até resolver aquele problema específico, mas se não estiverem a pensar no cenário global não se apercebem de que, ao resolver aquele problema, estão a criar um ou mais problemas noutro lado. A chave é os grupos trabalharem juntos fazendo colaborações.

Quais são as crises mais importantes que enfrentamos?
As alterações climáticas e a perda da biodiversidade, definitivamente. Estes são dois grandes problemas absolutamente conectados. As pessoas têm de se aperceber que fazemos parte de um mundo natural. Dependemos dele. Mesmo no meio da cidade, cada pedaço de comida que levamos à boca, o ar que respiramos, a água que bebemos vem do mundo natural. Dependemos de ecossistemas saudáveis.

Conheço muito bem o ecossistema de Gombe, saudável, feito de pequenas plantas, animais, árvores. É como uma bela tapeçaria. Quando uma espécie desaparece do ecossistema é como puxar um fio da tapeçaria. Se puxarmos demasiados fios, o ecossistema desaba. Por isso é que as alterações climáticas e a perda de biodiversidade estão conectadas. Ambas são o resultado do nosso desrespeito pelo mundo natural.

Outro problema que enfrentamos é a pobreza. Gombe fazia parte de uma grande floresta nas décadas de 1960 e 1970. Mas a meio da década de 1980, quando voei por Gombe, era apenas uma pequeníssima ilha de floresta rodeada por montes nus. As pessoas cortaram as árvores porque tinham de conseguir mais terra para cultivar alimentos. A terra que tinham estava a ser usada intensivamente e tinha-se tornado infértil. Faziam dinheiro da madeira vendida porque estavam com dificuldade em sobreviver. Foi aí que me apercebi: se não ajudamos estas pessoas a encontrar formas de ganharem a vida sem destruir o ambiente, não vai ser possível salvar os chimpanzés ou qualquer outra espécie.

Como obter o equilíbrio entre estes dois mundos?
Esse é um dos grandes problemas que muitas pessoas estão a tentar resolver. Vai haver soluções diferentes para lugares diferentes. Um dos maiores problemas que não mencionei é o número de pessoas no planeta: 7700 milhões. Em alguns lugares estamos a usar os recursos naturais de uma forma mais rápida do que a natureza consegue os repor. Supostamente, vamos atingir os dez mil milhões em 2050. O que vai acontecer se continuarmos com o mesmo funcionamento que tivemos até agora?

À volta de Gombe estamos a resolver o problema ajudando as pessoas a saírem da pobreza, encontrando outras formas de viver e ao mesmo tempo a salvar o ambiente. Eles aperceberam-se de que salvar o ambiente não serve só a vida selvagem, serve o futuro deles. Eles precisam das árvores, das suas sombras, da regulação do clima que elas fazem e das chuvas que trazem.

Mas há problemas diferentes em lugares diferentes que necessitam de soluções específicas. Não vou fingir que tenho respostas para todos eles. De alguma forma, temos de usar estes cérebros inteligentes, temos de nos juntar e descobrir as soluções antes de ser demasiado tarde. Mais uma vez, se não tivermos esperança não se podem encontrar as soluções, então é o fim.

Mas desde que iniciámos o programa Tacare demos bolsas para manter as raparigas na escola. À medida que a educação das mulheres melhora, o tamanho das famílias tende a diminuir. Também fornecemos informação sobre planeamento familiar. Não nós, pessoas brancas. São as pessoas locais que o fazem em cursos. As pessoas ficam muito satisfeitas porque sabem que a forma de se libertarem da pobreza é uma boa educação. E não é possível educar oito ou dez filhos. Esse número era normal quando cheguei a Gombe, agora baixou para três ou quatro. Ainda não é suficiente, mas é uma diferença enorme.

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A etóloga Jane Goodall ENRIC FONTCUBERTA/Lusa

No livro, diz que uma das razões para ter esperança é a juventude. Porquê?
Em 1991, apercebi-me de que os jovens estavam a perder a esperança. Diziam-me: “Fizemos mal ao futuro e não há nada a fazer.” Sim, fizemos mal ao futuro, mas não é verdade [que não se possa fazer nada], há uma janela de tempo onde podemos fazer algo. Foi aí que iniciei o programa Roots & Shoots.

O programa começou com 12 estudantes do liceu na Tanzânia que estavam preocupados com várias situações à sua volta. Disse-lhes para chamarem os amigos que sentissem o mesmo. Ficámos com um grupo de cerca de 30 pessoas, de oito escolas diferentes. Decidimos que cada humano tinha um papel a fazer e um impacto diário no mundo. Podemos escolher que tipo de impacto queremos ter. Como tudo está interligado, decidimos que cada grupo do Roots & Shoots deveria abraçar três projectos diferentes: um para ajudar as pessoas, outro o ambiente e outro os animais. Ou um grande projecto que cobrisse tudo.

Por isso, o que começou com aqueles 12 estudantes de liceu existe agora em 65 países e continua sempre a crescer: dos jardins-de-infância à universidade. Estes jovens, uma vez sabendo qual é o problema, assim que são encorajados e têm poder, fazem a diferença no mundo, plantando centenas de árvores, limpando o lixo, educando os pais e os avós. Têm esperança, estão cheios de energia e determinação, e sabem que vão fazer a diferença. É essa esperança que inspira os outros.

Porque é que o triângulo pessoas, ambiente e animais é importante?
Porque está tudo interligado. Não é que cada jovem tenha de fazer todos os três tipos de projectos, mas todos têm de aprender uns com os outros. É como em Gombe, não podemos ajudar os chimpanzés, nem o ambiente, a não ser que ajudemos as pessoas. Eles precisam de compreender isso, precisam de não pensar de uma forma estreita e perceber como ajudar um projecto impacta outro.

Há poucos anos nasceu um movimento mundial de jovens activistas que faz greve à escola e se manifesta regularmente. Greta Thunberg será a personalidade mais proeminente desse movimento. Muitos criticam-nos por causa da sua visão a preto e branco. O que pensa sobre isso?
Não há dúvida de que eles chamaram a atenção para a questão. Mas muitas das pessoas mais velhas rejeitam que os jovens lhes digam o que fazer e o que não fazer. É muito diferente da abordagem que encorajo os participantes do Roots & Shoots a ter. Não é uma abordagem de apontar o dedo e dizer “deves fazer isto e não deves fazer aquilo” ou “pára de usar combustíveis fósseis, já!”. Isso é impossível, estamos a mover-nos o mais rapidamente que conseguimos em direcção às energias renováveis. Mas não se pode parar com o uso de combustíveis fósseis de um momento para o outro.

A única forma das pessoas mudarem é de dentro. E como é que se faz isso? Encontrando a história certa. É importante ouvir cada pessoa, sentir porque defende uma determinada posição ou porque acha que a mudança é impossível. Mas, provavelmente estamos numa situação tão extrema em que ambos os métodos são necessários. Não sei.

De onde veio a sua motivação para contar histórias?
Contar histórias sempre esteve no meu sangue. Um quarto da minha ancestralidade é galesa e eles são óptimos a contar histórias e a cantar. Quando sonhei ir para África cuidar de animais tinha dez anos e o que queria fazer era viver com animais e escrever livros sobre eles. Por isso, mesmo quando tinha cinco anos, ditava histórias à minha mãe e eram sempre sobre animais.

Porque é que os animais são tão importantes para si?
Não sei. Amo-os, sou fascinada por eles desde nascença e tive esta mãe maravilhosa que me apoiava. Isso é essencial, ter pais que nos apoiam e não aquilo que acontece tão frequentemente, os pais que proíbem: “Tu não devias fazer isso, devias fazer aquilo.” Especialmente na Ásia, onde os jovens são empurrados para os negócios com o objectivo de fazer dinheiro, dinheiro, dinheiro. E é isso que está errado com o mundo. Essa é uma definição errada de sucesso. Necessitamos de uma nova mentalidade, uma mentalidade que diga que o sucesso não é sobre dinheiro nem poder.

Ter sucesso é viver de uma forma decente, ter o suficiente, cuidar da família, ter tempo para estar com a família e para estar fora de casa, na natureza. São os jovens que mais provavelmente se moverão nessa direcção. Porque as suas mentes são flexíveis e não estão fixadas. Mas é interessante que muitos empresários viram os avisos e estão a mudar. Mudaram parcialmente por causa da pressão dos consumidores, pessoas que preferem comprar artigos produzidos com regras éticas.

Durante a sua vida, desenvolveu relações importantes com indivíduos de outras espécies, como cães, chimpanzés e até a árvore que está na sua casa.
Sim, a faia está ali. Consigo vê-la.

Porque é que essas relações são importantes?
Não sei, sempre foram, não consigo responder porquê. Mas é muito importante que consigamos pensar nos animais e até nas árvores com respeito, como muitas populações indígenas. Elas podem caçar animais, mas são muito respeitadoras. Quando os nativos americanos caçam animais e os comem, rezam e agradecem ao animal por se sacrificar não que o animal tenha escolhido isso, mas ainda assim...

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Em 2017, Jane Goodall veio a Lisboa dar uma palestra Rui Gaudencio

Nós, [ocidentais] não respeitamos nada. Amontoamos animais com uma crueldade horrível, caçamos por desporto, tiramos chimpanzés bebés das suas mães e torturamo-los para fazerem performances no circo. Há ainda toda a investigação médica. Somos realmente muito, muito cruéis.

Quando as pessoas começam a pensar nos animais como indivíduos, com personalidade, com mente e emoções, há uma mudança. É muito importante começarmos a caminhar para uma dieta baseada em plantas. Porque todo este consumo de carne usa áreas enormes para cultivar cereais para os alimentar, usa uma quantidade enorme de combustíveis fósseis para levar os cereais até aos animais, e os animais até aos matadouros e a carne até à mesa das pessoas.

Ter uma dieta à base de vegetais é uma das melhores coisas que se pode fazer. Mas, mais uma vez, não é bom ser tudo ou nada, não é bom dizer “tens de parar de comer carne, lacticínios e ovos”. Não se faz isso, deve-se dizer “tenta comer carne duas vezes por semana, vê como te sentes”.

Voltando à sua relação com os animais. Qual é a diferença da relação que tem com pessoas?
Com os humanos tenho discussões, tenho diferentes tipos de relações sociais. Mas com os animais, eles são, de certa forma, puros. Mesmo que os chimpanzés possam ser brutos, não são deliberadamente brutos, não vão planear uma guerra. Não vão planear torturar alguém a sangue frio. Eles actuam apenas a partir do que sentem.

Mas a minha relação com animais, especialmente com os cães, foi muito importante. O Rusty está atrás de mim [numa fotografia] o meu cão de infância.

Muito querido.
Sim. Depois de estar dois anos com os chimpanzés, o meu mentor Louis Leakey disse-me: “Tens de ir fazer o doutoramento, quero que os cientistas te levem a sério” e fui para a Universidade de Cambridge, em 1961.

Lá, disseram-me que não podia falar sobre as personalidades dos chimpanzés, as suas mentes ou as suas emoções; que não podia mostrar empatia por eles, porque os cientistas têm de ser objectivos e não podem ser empáticos e objectivos ao mesmo tempo, o que é uma treta completa. O meu cão mostrou-me isso: é possível partilhar uma vida com um animal, seja um cão, um gato, um cavalo, um porco. Sei que eles têm personalidades distintas e com certeza sentem dor, felicidade.

Por isso, defendi aquilo que acreditava e obtive o meu doutoramento. A ciência mudou, agora definimos os animais como sencientes, estudamos a sua inteligência, a sua personalidade e as suas emoções.

Como se sente fazendo parte dessa transformação?
Dou sempre o crédito aos chimpanzés, mas suponho que posso receber uma pequena parte desse crédito. Essa é uma das coisas pelas quais gostaria de ser lembrada. Porque isso realmente começou a mudar.

Fala muito sobre o seu entusiasmo de estar na natureza, onde consegue encontrar uma ligação espiritual. Porque é tão importante?
Já foi provado cientificamente que as crianças nos primeiros anos de idade desenvolvem-se melhor a nível psicológico se passam tempo na natureza. No Japão e no Canadá, os médicos prescrevem aos doentes tempo na natureza. Algo que não se ouvia falar no passado.

Nós viemos da natureza, por isso suponho que há uma necessidade profunda de se estar na natureza. Infelizmente, as crianças ao crescer na cidade não têm essa hipótese. Nos grupos do Roots & Shoots tentamos levar os jovens para a natureza ou espalhamos a natureza na sala de aulas. Quando estou num hotel, numa grande cidade, peço sempre um quarto onde possa ver uma árvore e rearranjo a mobília para, quando estou na cama, a poder ver.

Quando estou fora de casa, particularmente na floresta, tenho esta sensação da presença de um poder espiritual enorme. As outras pessoas não pensam assim, mas não ligo, porque essa sensação dá-me força. Há alturas que estou tão cansada e tenho que dar uma palestra e penso “não consigo”. Mas acontece algo muito estranho, parece que a minha mente se abre e, por vezes, posso posicionar-me ao meu lado e observar-me a mim mesma a dar a palestra. É bastante assustador, porque tenho de voltar rapidamente [ao meu corpo], senão arrisco-me a descarrilar. Mas é como se houvesse algo que estivesse a ajudar-me. Não sei o quê, haverá pessoas que chamam a isto Deus, outras Alá, outras criador, outras pessoas diriam que é loucura...

De qualquer forma, para mim e para muitos outros estar na natureza dá-nos uma ligação espiritual. Mesmo que não seja com um poder maior, mesmo que seja com as árvores. É daí que nós viemos.

Todos os anos volta a Gombe, na Tanzânia. Que ligação tem com esse lugar?
Infelizmente, a Gombe a que volto já não é a Gombe que amava. Há turistas, os chimpanzés que conhecia tão bem, e que eram como família, estão todos mortos, excepto um. Na minha idade avançada, não vou mais escalar até ao topo dos montes. Tenho um joelho frágil e, se ele dá de si e eu cair, serei um fardo para as pessoas. Se os chimpanzés estão nos patamares mais baixos dos montes, então normalmente há turistas à sua volta que vão estar tão ansiosos por me fotografar como para fotografar os chimpanzés.

Ainda assim, Gombe é especial. Temos uma equipa maravilhosa. Vou para lá daqui a dez dias. As pessoas que seguem os chimpanzés contam-me quais são as novidades. Estamos na quinta geração deste estudo de longo termo com os chimpanzés.

Mas o que realmente gosto é das minhas memórias de quando estava lá. É isso que me alimenta. Eram os dias mais incríveis. Agora estão a fazer filmes [com os chimpanzés] e, quando os vejo, estou de volta àquele lugar, volto a ver como eu era, volto a sentir a relação que tinha com aqueles chimpanzés, quando conhecia cada um deles, quando conhecia as suas personalidades. Era muito especial.

Pode partilhar algumas dessas memórias?
Passava dias e dias sozinha, seguindo uma família de chimpanzés de cada vez. Claro que agora mantemos uma certa distância dos chimpanzés, sabemos que podem apanhar as nossas doenças e que nós podemos apanhar as doenças deles. Mas na altura, há 60 anos, ninguém estava a pensar nesses termos. Só tinha havido outros três estudos de campo. Por isso, foi uma sensação maravilhosa quando a fêmea sénior Flo, que tinha acabado de se acostumar a mim, confiou em mim o suficiente para deixar o Flint, o seu filho de cinco meses, vir na minha direcção. Ela tinha as mãos à volta dele e pelo beicinho que fez notava-se uma certa preocupação, mas ainda assim deixou-o vir e ele aproximou-se de mim, esticou o braço e tocou no meu nariz. Que sensação incrível que foi!

Também quando finalmente consegui jogar com a Fifi. Ela estava numa árvore agarrada a uma liana comprida, eu esticava o braço para tocar na liana e ela puxava a liana para outro lado, impedindo-me de a tocar. Fizemos este jogo durante algum tempo, o que é o que os irmãos mais velhos por vezes fazem com os irmãos bebés. Os irmãos bebés ficam muito chateados e começam a choramingar, e os mais velhos riem-se e correm à volta da árvore. Por isso, vivi estes pequenos momentos de intimidade.

Poucos humanos têm esse tipo de experiência com animais selvagens.
Sim. Provavelmente nunca mais irá voltar a acontecer porque é suposto mantermo-nos afastados deles. Mas, uau!, ser capaz de fazer quase parte do grupo... Não fazia parte do grupo porque sempre estive a observá-los de uma certa distância. Mesmo assim, quando os jovens vinham ter connosco, era simplesmente incrível.

Mudando de assunto, o que espera para o seu futuro?
Espero que o meu corpo continue tão forte como está e que possa continuar a fazer o que faço. Enquanto puder, o meu futuro vai ser continuar a fazer crescer o Roots & Shoots, continuar a dar palestras, a tentar inspirar as pessoas, falar com líderes de empresas e conhecer políticos.

Gosta de fazer isso?
Durante toda a pandemia, estive a dar palestras virtuais e olhava para aquela pequena câmara com luz verde, no topo do ecrã. Não há nenhum retorno, nenhum riso. Por isso, a primeira vez que falei ao vivo para uma grande audiência, na Áustria, há cerca de dois meses, foi maravilhoso. Falei para 4000 pessoas que estavam num lugar enorme e bonito. Havia todo um entusiasmo, uma vitalidade. Mas ao fazer as palestras virtuais, pela câmara, é necessário pôr a mesma quantidade de energia e entusiasmo na palestra, tal como se fosse ao vivo, senão não há qualquer sentido em fazê-lo. Muitas pessoas disseram-me, “Jane, sentimos que estavas a falar connosco”.

Imaginemos que um dia acordava com 26 anos e poderia ser naturalista a tempo inteiro. O que gostaria de estudar?
Quando fui para a África, poderia ter estudado qualquer animal, apenas queria estar na natureza selvagem e viver entre as espécies. Leakey sugeriu os chimpanzés. Se eu tivesse 26 anos e soubesse o que sei agora, quereria estudar o mangusto-anão ou a hiena-malhada (passei um ano em Ngorongoro [na Tanzânia] a observar as hienas). Se tivesse 26 anos, e não soubesse o que sei agora, quereria estudar elefantes. Mas também quereria estar em algum sítio como no Serengueti [na Tanzânia] ou no Ngorongoro e aprender sobre todos os animais do ecossistema!

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