A tempestade perfeita: aumentam as desigualdades educativas e cresce a falta de professores

Devemos pugnar pelo referido quadro da transição para a democratização. Mas não será suficiente. É também elementar suprimir de vez o que o neoliberalismo nos trouxe na avaliação dos professores e na gestão das escolas e agrupamentos.

Sucedem-se os factos. Ao aumento brutal das desigualdades educativas, associou-se a crescente falta de professores. A novidade, ou a tempestade perfeita, é que os dois fenómenos cresceram paralelamente, em consequência do desinvestimento na escola pública e na valorização social e profissional dos professores.

É fundamental debater as causas e encontrar soluções.

Mas antes do mais, recorde-se que a massificação escolar no Ocidente conseguiu uma escolarização quase plena nos primeiros nove anos de escolaridade. Os países que mais avançaram fizeram-no sem turmas numerosas, sem educação a tempo inteiro na escola, com currículos completos, com avaliação contínua e exigente e com confiança nos professores. Digamos que foi o quadro da transição para a democratização. O que agora se regista é a queda desses pilares da prosperidade.

E para a compreensão da descida, é crucial estudar as teses de Daniel Markovits e Michael Sandel muito críticas da armadilha meritocrática, ou “tirania do mérito”, que travou a fundo o elevador social. No fundamental, os autores explicam como o investimento financeiro na educação se sobrepôs ao talento e ao esforço e originou, com efeito de bola de neve, um fosso crescente entre os ricos e as restantes classes sociais.

Nos EUA, um exemplo que já detalhei neste artigo, há explicadores de alunos do ensino secundário que cobram 530 a 880 euros por hora e o investimento anual por estudante nas escolas privadas com propinas mais altas é de 66.200 euros contra 13.200 na escola pública. Para além disso, há estruturas privadas, do pré-escolar ao universitário, que também recebem fundos públicos (Princeton, por exemplo) e que têm uma média impressionante de oito alunos por turma.

Por tudo isso, concluiu-se que o aumento das desigualdades educativas condenou ao empobrecimento as classes com menos recursos e gerou uma polarização política com votações extremadas. Se é fundamental agir a partir das causas para, no mínimo, se atenuar a tragédia, Joe Biden declarou (10 de Junho de 2022) que "quer enterrar o neoliberalismo e promover empregos mais bem pagos", no que parece ser acompanhado por outros governos ocidentais, e Olaf Scholz denunciou a farsa meritocrática na campanha eleitoral; e se é difícil declarar o diagnóstico, é dificílimo concretizar caminhos alternativos a políticas tão enraizadas.

Descritos os pontos prévios, faça-se um exercício produtivo a pensar no futuro. Procurem-se variáveis críticas que associem as desigualdades educativas e a falta de professores a partir da inevitabilidade - que tem vantagens e desvantagens - da transição digital, que é, sublinhe-se, uma prioridade de negócio para as gigantes tecnológicas.

Uma causa que relacionou as componentes da tempestade perfeita, e por estranho que pareça, foi a “abolição” da lentidão nas salas de aula das escolas públicas. Ensinar, e aprender, devagar e com tempo, ficou fora das prescrições didácticas. A voracidade do digital acelerou a impossibilidade do humano como professor no ensino público, já que exigiu um manancial de soluções rápidas como condição para se ter alunos atentos, motivados e entretidos.

Foi, portanto, só com relativa surpresa que se confirmou que o digital “absoluto” não favoreceu as aprendizagens; pelo contrário: não só aumentou a adição tecnológica, como autorizou o protesto nos momentos vagarosos. Os professores testemunharam a substituição da transmissão de conhecimentos pelo entretenimento, com um detalhe curioso: em regra, os adolescentes transformaram-se em narcisistas desagregados na sua bolha digital. Há até posições peremptórias para a proibição dos dispositivos digitais antes do ensino secundário, fundamentadas no que foi referido e na necessidade da aquisição de várias destrezas intelectuais através do uso do papel e do lápis.

O universo descrito acelerou as desigualdades educativas e a exaustão de todos os professores; e, obviamente, independentemente da idade. Até a consistente Finlândia "confessou" uma década muito difícil na educação e já enfrenta a desistência em se ser professor. O Governo conservador (de 2015 a 2019 e coligado com a extrema-direita dos “Verdadeiros Finlandeses") de Juha Sipilä, um milionário das telecomunicações, foi pioneiro na estratégia das “políticas rápidas” e das reformas alicerçadas em projectos velozes, descontextualizados e fragmentados. O resultado foi mais privatização, mais instabilidade e menos investimento.

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Daniel Rocha

Um outro sinal desesperado foi dado pela França. A recente aplicação digital que "recruta professores em 30 minutos" está condenada ao insucesso; até pela indiferença dos destinatários. Mas para além da “preocupação com a fragilidade dos recrutados”, a crítica incide na inexistência de uma reserva de professores já formados e recrutados por concurso, nos desperdícios em projectos, ou organizações representativas, que implicam milhares de professores sem componente lectiva e no uso de avultadas quantias em profissionais e programas das federações de encarregados de educação.

Outra causa fundamental centrou-se numa espécie de paradoxo da velocidade. Os decisores do digital “absoluto”, e veloz, nas redes de recursos educativos, foram incapazes de acelerar a construção de software moderno nas redes de recursos administrativos e provocaram a hiperburocracia digital que infernizou o exercício dos professores.

Chegados aqui, afirme-se que em democracia nunca se está bloqueado. Neste caso, e desde logo, devemos pugnar pelo referido quadro da transição para a democratização. Mas não será suficiente. É também elementar suprimir de vez o que o neoliberalismo nos trouxe na avaliação dos professores e na gestão das escolas e agrupamentos.

E apesar do saber muito insuficiente sobre o modo como cada um aprende, já se inscreveram dois imperativos para enfrentar a tempestade perfeita: 1) sensatez, equilíbrio e prudência no uso do digital; 2) professores confiantes que ensinem a sério em escolas públicas e não apenas nas dos mais ricos.

Mas só se reduzirão as desigualdades, se a generalização do ensino de qualidade se fizer sem os recreativos modismos de “learning coaches” porque a finalidade não é a produção de indivíduos não gregários, passivos, acríticos e hedonistas. Aliás, a democracia exige a dimensão pública da educação e a insubstituível e vagarosa relação humana: olhos nos olhos e corpo a corpo.

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