Roe vs. Wade. Supremo dos EUA reverte decisão que estabeleceu o direito ao aborto

Missouri torna-se o primeiro estado a proibir interrupções voluntárias de gravidez, minutos depois do anúncio do Supremo. Obama considera a decisão um ataque “às liberdades fundamentais de milhões”.

Joe Biden “chocado”. Milhares manifestam-se contra e a favor do direito ao aborto nos EUA Joana Bourgard

Os juízes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos aprovaram a reversão da decisão do caso Roe vs. Wade, abrindo assim a porta a que o aborto venha a ser proibido em muitos estados norte-americanos. E bastaram alguns minutos para que o Missouri reclamasse para si o estatuto de primeiro a pôr fim a este direito. Seguiu-se o Louisiana. ​Nancy Pelosi, a presidente da Câmara dos Representantes, descreveu a decisão como “uma bofetada na cara das mulheres”​. “É um dia triste para o Tribunal e para o país”, considerou pouco depois o Presidente, Joe Biden. “Agora, sem Roe, sejamos muito claros, a saúde e a vida das mulheres desta nação estão em risco.”

Falando de um retrocesso de 150 anos, o chefe de Estado defendeu que “a única forma segura de restaurar o direito de escolha das mulheres… é o Congresso restaurar as protecções de Roe vs. Wade como lei federal”, algo que “nenhuma acção executiva do Presidente pode fazer”. Por isso, apelou muito directamente ao voto nos democratas nas eleições intercalares de Novembro, onde o Partido Republicano tentará recuperar a maioria nas duas câmaras do Congresso. Ao mesmo tempo, assegurou, não deixará de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para proteger o direito das mulheres a viajarem para um estado próximo que permita o aborto e o acesso a medicação e contracepção – direitos que vários estados mais conservadores querem limitar.

“Sustentamos que a Constituição não confere o direito ao aborto… e que a autoridade para regular o aborto deve ser devolvida ao povo e aos seus representantes eleitos”, lê-se no texto da decisão que reverte um precedente estabelecido pelo mesmo Supremo Tribunal, algo que raras vezes aconteceu. A favor votaram os juízes conservadores; os três liberais opuseram-se.

Há 49 anos que a decisão no caso Roe vs. Wade sustentava que a Constituição dos EUA protegia o direito total da mulher a fazer um aborto nos primeiros três meses de gravidez (impondo algumas restrições no segundo trimestre e proibindo-o no terceiro). Agora o país voltará à situação que existia antes de 1973, quando cabia a cada estado decidir se proibia ou autorizava interrupções voluntárias de gravidez.

Estima-se que metade dos estados proíbam rapidamente o procedimento, alguns deles, de imediato: há 13 estados que têm leis que prevêem a entrada em vigor automática de uma lei proibindo o aborto na eventualidade de uma reversão do caso no Supremo – é o que acontece no Missouri e no Louisiana – e outros sete a aguardar decisões que podem demorar poucas semanas ou alguns meses. No conjunto, segundo as contas do jornal The New York Times, há 25,5 milhões de mulheres em idade fértil nestes 20 estados.

Há ainda nove estados que deverão voltar às suas leis que proibiam o aborto antes da decisão de 1973. Em sentido contrário, o Times prevê que o aborto deverá continuar a ser legal em 21 estados: em alguns, a mais alta instância judicial do estado declarou que se trata de um direito protegido pela Constituição estadual; outros referendaram a questão e só um novo referendo poderá alterar a lei existente.

A decisão do Supremo surge na sequência da análise a um caso onde se contestava a proibição do aborto após as 15 semanas, no estado do Mississípi. “Este é um dia monumental para a santidade da vida”, congratulou-se o attorney general (um cargo equivalente a um misto de ministro da Justiça e procurador-geral) do Missouri, Eric Schmitt, partilhando uma fotografia em que assina a lei que porá fim ao direito ao aborto no seu estado quando entrar em vigor, dentro de dias. “Este é o dia feito pelo Senhor; regozijemo-nos nele”, afirmou o attorney general do Louisiana num comunicado onde anuncia que a lei já preparada no estado entrará desde já em vigor.

A vasta maioria dos norte-americanos é a favor do aborto, em percentagens que têm andado acima dos 60% e chegam perto dos 70%, não variando muito desde 1973.

“O Supremo não só reverteu um precedente de quase 50 anos como relegou a decisão mais intensamente pessoal que alguém pode tomar aos caprichos de políticos e ideólogos”, escreveu o ex-Presidente Barack Obama na sua conta do Twitter, falando de um ataque “às liberdades fundamentais de milhões”. E é por esta ser uma questão política e ideológica que Biden insistiu tanto nas eleições de Novembro. “Este Outono, têm de eleger mais senadores e representantes que voltem a codificar o direito de escolha na lei federal. Este Outono, Roe vai a votos. As liberdades pessoais vão a votos. O direito à privacidade, à liberdade e à igualdade – tudo isto irá a votos”, realçou.

Com protestos previstos por todo o país, Biden apelou aos manifestantes para se manterem “pacíficos, pacíficos, pacíficos” face uma decisão que só vem exacerbar a profundíssima divisão que marca a vida do país e a sua democracia. “Isto não acabou”, prometeu.

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