Serviços consulares e soberania

Os serviços consulares precisam de maior investimento em pessoal e revisão das tabelas salariais. Que tipo de diplomacia e apoio aos portugueses no estrangeiro se consegue dar sem meios ao dispor?

A situação que se arrasta há vários anos na rede diplomática portuguesa é caótica, sobretudo no que aos serviços consulares diz respeito. Desde funcionários no limiar de pobreza pelos salários desajustados, a outros sem apoio na doença, sem reforma, suspeitas de negócios ilegais paralelos – são inúmeras as situações que deveriam envergonhar qualquer governo. No início deste século tínhamos 2450 funcionários, hoje são menos de 1400, sendo que, destes, 400 trabalham nas residências dos embaixadores como cozinheiros ou motoristas. A maioria dos nossos funcionários tem mais de 60 anos e obviamente têm estado a sair e os que entram nem aquecem o lugar. Que tipo de diplomacia e apoio aos portugueses no estrangeiro se consegue dar sem meios ao dispor?

Em Portugal não houve actualizações salariais entre 2009 e 2020, imagine-se o que os trabalhadores sofreram no estrangeiro, sobretudo em países onde a inflação conheceu números assustadores. Como ficou a qualidade de vida destas pessoas? Como conseguem sobreviver com salários abaixo do ordenado mínimo do país onde estão? As perdas cambiais não são tidas em conta e o euro tem perdido valor face ao franco suíço ou à libra, mas o diploma das correções cambiais está nas Finanças a aguardar resolução.

Fora da zona euro, tudo se complica ainda mais. Há funcionários de embaixadas portuguesas, por exemplo, na Suíça, que recebem subsídios do governo do país onde se encontram por terem salários demasiados baixos. Aqui, o salário mínimo ronda os 4000€/mês, os trabalhadores da embaixada portuguesa recebem cerca de metade do ordenado mínimo do país, uma demonstração do desrespeito e do abandono a que são votados os serviços consulares nacionais, mas há mais exemplos muito claros!

Nos EUA, são abertos concursos (Washington, Newark, San Francisco), mas mesmo quando as vagas são preenchidas, os funcionários não ficam muito mais que três meses. Porquê? O ordenado são 1600€, menos que um part-time (quatro horas diárias) no McDonald’s local. Em San Francisco temos o cônsul e apenas um funcionário; em Washington, como dos 1600€ ainda se deveriam retirar 30% para impostos (federais e estatais), esses descontos não são feitos, o que é ilegal. Mais: todos sabemos como é o sistema de saúde americano, como podemos esperar que alguém viva de uma forma minimamente digna nestas condições? Em Newark, onde existe uma das maiores comunidades portuguesas nos EUA (entre 10% a 15% da população), há três funcionários no ativo, mas há 15 anos eram 18. No ano passado abriu um concurso, as vagas foram preenchidas mas, apesar da própria comunidade querer apoiar financeiramente os novos funcionários, estes foram embora.

Em Buenos Aires temos três funcionários. Aqui mesmo ao lado, em Madrid, o ordenado mínimo é de pouco mais de 1000€, um funcionário dos nossos serviços consulares recebe pouco mais de 700€. Isto é inacreditável, mas espantem-se: o embaixador, com despesas de representação, passa os 16.000€/mês, sendo que a estes abonos acresce a remuneração em Portugal, o abono para dependentes, educação, a residência do Estado, tudo pago, inclusivamente os trabalhadores ao seu serviço e ao serviço do seu agregado familiar.

Na África do Sul há cinco funcionários com mais de 70 anos, alguns com mais de quatro décadas de serviço para o Estado português, que não deixam de trabalhar porque não têm nem proteção social nem reforma, porque Portugal lhes falhou ao longo dos anos.

O Brasil dá-nos um exemplo paradigmático da relevância e respeito que os países têm pelos seus serviços consulares. A embaixada do Brasil em Lisboa abriu concurso para assistente técnico por 1680€ x 14 meses; já Portugal abriu concurso idêntico para uma embaixada portuguesa no Brasil, por 450€ x 14 meses. A inflação no Brasil foi, desde 2013, de 180%, nesse período os nossos funcionários foram aumentados 0,9% e são pagos em reais.

A tudo isto, se já não fosse suficientemente grave, acresce algo extraordinariamente preocupante. Pagar salários de 200€ para um técnico superior (Paquistão) ou de 1800€ (Dubai), onde alugar um apartamento custa, no mínimo, 1000€ e não há segurança social mas apenas seguros de saúde, faz com que os únicos concorrentes sejam locais. Na embaixada de Portugal no Dubai nenhum funcionário é português e, pior, nenhum fala sequer um pouco de português e não é caso único. Os seguranças ou os porteiros, na grande maioria de embaixadas e postos consulares, não são portugueses, não falam português, e os utentes são recebidos na sua embaixada por quem não fala a sua língua.

Em Luanda, quem abre o portão da embaixada portuguesa (está do lado de dentro do mesmo, em território nacional) é por vezes um elemento da própria polícia angolana, um atentado à soberania nacional, que urge inclusivamente explicar.

Esta irresponsabilidade e falta de competência dos sucessivos governos conduziram-nos a uma situação em que temos a representar o nosso país pessoas que não estão minimamente identificadas com a cultura, com o país e nem tão pouco conhecem a língua. Esta estratégia economicista e de desrespeito pelos serviços consulares, que obviamente se traduz num desrespeito pela imagem do país no exterior e consequentemente pelo próprio país, leva-nos aos casos amplamente divulgados de suspeitas de esquemas ilegais com vistos de nacionalidade. Muitas destas pessoas aceitam entrar na rede diplomática não pelo ordenado, mas pelas negociatas que ali podem fazer. Alegadamente, com estes esquemas tiram 4000€ a 5000€ vendendo a nossa nacionalidade ao desbarato, com a conivência de quem sabe destas falhas há anos e nada faz.

Os serviços consulares precisam de maior investimento em pessoal, revisão das tabelas salariais equiparando o poder de compra de forma justa e equilibrada consoante o país em que se encontram, e Portugal precisa que a maioria dos funcionários seja portuguesa e falante da nossa língua.

O senhor secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, Paulo Cafôfo, disse há pouco tempo que “estes portugueses no mundo contribuíram mais do que ninguém para termos um Portugal democrático”, mas na verdade são desrespeitados há anos. Estas pessoas, que são o rosto de Portugal no estrangeiro, nem conseguem ter, como ficou claro neste artigo, uma vida digna.

Necessitamos, sobretudo, que haja respeito por Portugal e pelos portugueses, os de cá dentro e os lá de fora.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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